Minha essência

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Lia

São 5h30 da madrugada. Faz precisamente 1hora que estou dando voltas na cama. Eduard dorme ferrado.
Depois de receber a noticia que tinha cancêr eu passei a ter muitos pesadelos, e muitas de minhas noites passaram a se transformar em conversas intimas entre mim e essa doença...tem dias em que chamo a Deus para testemunhar nossos debates...
Estou precisamente me debatendo com meu interior, inevitavelmente meu cabelo continua caindo e isso me tira o sono...sei o que tudo isso significa e sei ainda que não poderei evitar mais rapar meu cabelo...
Eu tentei me habituar a um corte curto para facilitar a adaptação, mas curto é bem diferente de rapado...
Levanto da cama e vou até ao banheiro. Passo água em minha face, preciso tentar relaxar um pouco a tensão de meus músculos faciais...
Olho meu reflexo no espelho e constato meu estado atual: a face rosada foi substituida por um tom amarelado consequência da quimio, olheiras gigantes circundam meus olhos....e meu cabelo, meu extenso cabelo grosso é agora curto e fraco... Muito lentamente e antevendo o que sucedaria retiro o pente da gaveta e penteio esses poucos fios que ainda compõem minha fibra capilar...
É, eu sei, é só cabelo, voltará a crescer... mas neste instante eu não estou vendo ele nascer, mas sim morrer... e isso traz mais que uma sensação de perda...traz frio na barriga, tráz magoa a minha alma, traz angustia e revolta...tristeza e muitas muitas lágrimas...

Não quero envolver Eduard neste passo, sei que ele iria estar como sempre tem estado epm cada processo, meigo, atencioso e delicado mas eu não quero...eu ainda não cortei e sinto uma dor tão grande e sei que inha autoestima vai cair junto com o cabelo... Eu quero me preparar antes de mostrar para ele o resultado, quero me olhar de todas as formas até conseguir aceitar de alguma forma que posso continuar a ser amada e desejada por ele, e para isso eu preciso desse tempo sózinha...
Será Susana quem me ajudará a rapar o cabelo. Eu sei que ela é a pessoa indicada. Envio uma mensagem para ela falando de minha intenção e me espanto com sua resposta imediata.
" Querida estarei em sua casa ás 11h com tudo que precisaremos. Te amo. Sú "
Sua total disponibilidade acalma um pouco minha ansiedade. Sei que não será fácil, que vai doer e provavelmente marcar minha vida, mas tal como tenho superado muitoa desafios, este será mais um e certamente meu cabelo renascerá e com ele minha autoestima.

Algumas lembranças invadem meus pensamentos.

Estamos eu e Victor lá no Rio, em nossa primeira casa no Bairro São Roberto. A gente vivia numa casinha pequena e humilde bem próxima de um jardim que tinha uma linda lagoa. Victor e eu brincavamos muitas vezes junto dessa lagoa, a gente costumava fazer barquinhos de papel e batalhavamos qual dos nossos barcos afundava primeiro.
Sempre fomos muito próximos apesar de sexos opostos a gente brincava junto a tudo um pouco. Estou recordando uma cena cómica em que estavamos fazendo os barquinhos e decorando-os. Para isso a gente levava todo o material possivel e imaginário e dessa vez Victor teve a ideia de cortar alguns fios do meu longo cabelo e colar no barco. Eu alinhei nessa loucura e quando nossa brincadeira terminou eu tinha dado uns belos cortes apenas num dos lados de minha cabeleira! Minha mãe não achou graça como nós tinhamos achado e para acertar nosso erro eu tive que cortar meu cabelo quase pela metade... essa alteração me valeu algumas lágrimas já que minha imagem mudou tanto que eu não aguentei o resultado! Guardei essas mechas de cabelo durante algum tempo, provavelmente e se minha mãe não se desfez delas elas continuam lá no meu quarto, numa outra casa que mais tarde meu pai conseguiu comprar quando nossa vida deu uma reviravolta financeira. Meus pais serão sempre minha inspiração por tudo que passaram enquanto pobres até alcançarem uma vida confortável graças a sua luta e muito trabalho. Minha mãe sempre investiu em nossa educação e na verdade quando a gente se formou sua recompensa chegou junto..
Estou chorando recordando todos esses momentos...bom, no fundo são lágrimas "alegres", lágrimas de emoção e saudade... quando eu cortei naquela tarde meu cabelo, aquela garota de 7anos chorou ao perder um pouco de sí, minha mãe trouxe uma caixa onde colocamos aquelas mechas que segundo ela " não passavam de uma mudança, que traria algo diferente mas que não teria que significar obrigatóriamente algo mau, que seria eu a única resposável por dar a esse passo algo de positivo na minha vida".

Tudo se encaixa em minha cabeça no momento.
É apenas cabelo que guardarei e manterei numa caixa, marcará uma mudança não só estética mas também interior. Eu sou muito mais que meus fios de cabelo. Muito mais que minhas roupas e acessórios, eu sou uma lutadora que trava uma batalha contra esta doença que trará mudanças mas não um final em minha vida....

Duas horas mais tarde já sózinha em casa, Eduard tinha saído depois de eu garantir que prefiro fazer isto sem sua presença. Mais uma vez sua dedicação e ternura estiveram presentes, sei que seu coração ficou ansioso e apreensivo mas por mais que me doa causar tudo isso nele eu não vou nem posso evitar isso. Ele é minha alma gémea meu amor e meu conpanheiro e claro que tudo que marcar minha vida marcará a dele. Infelizmente estou dando a ele no momento mais medo e dor que certeza e bem estar mas tudo não passará de uma fase menos boa em nossas vidas e o tempo trará nossa recompensa.
Em relação a sua insistência em casarmos já eu falei com ele e chegamos a uma conclusão. Casaremos no cartório ainda este mês sem cerimónias e convidados. Apenas nós dois e nossa vontade de nos unirmos e claro acompanhados de duas testemunhas necessárias que decidimos serem Victor e Mateus. Quando todos os meus tratamentos terminarem ou estabilizarem meu estado fisico aí faremos nossa boda e nossa lua de mel.
Eduard entendeu minha vontade e eu entendi e respeitei a sua e chegamos a essa conclusão.

Susana chegou e trouxe uma máquina de cortar cabelos. Não comentou minha decisão apenas me abraçou e falou que isto seria apenas uma das etápas para chegar a minha meta e que durante todo o trajecto sempre estaria lado a lado comigo.
Me abraçou e falou:
-Agora puxe essa cadeira para a frente desse espelho e se sente nela. - Eu fiz tudo que pediu, em silêncio ela pousou uma toalha sobre meus ombros, e aí uma ideia passou por minha cabeça.
-Susana! - interrompi nosso silêncio. - Pode por favor gravar?
- Gravar? Tem certeza?
-Absoluta. - Me levantei e trouxe a camara de Eduard, aquela camara que ele sempre usa para gravar momentos agradáveis que passamos.
-Coloque onde achar que visualiza de um ângulo que transmita 100% do momento.
Susana testou tudo e acenou que estáva tudo preparado.
Aí ela ligou a máquina, senti o ruído cada vez mais próximo até sentir que realmente meus cabelos caíam.. Apesar de ter um espelho bem na minha frente eu não me via nele, eu fechei os olhos e inspirava e expirava profundamente, não trocamos uma palavra sequer... Susana chorava eu sabia porque sentia a passagem da máquina trémula e depois de começar a sentir minha cabeça a meio rapar eu sentia suas lágrimas cairem sobre ela...
Eu também chorava, muito e lentamente, tentava não desabar e interromper o trabalho de minha amiga de sempre...
Era tão doloroso tão assustador tão injusto...apesar de me preparar era duro muito duro...

Quando ela terminou mantive meus olhos fechados. Sentia Susana arrumar tudo á minha volta. Tirou a toalha que cubria meus ombros e com algo semelhante a um pincel afastou os cabelos que talvez tivessem caído e se mantido em meu pescoço... Quando terminou senti que se ajoelhou na minha frente e apoiou seus braços em minhas pernas. Inspirou profundamente e falou:
" Do que você tem medo é do cancêr. Isto é só cabelo, que muito em breve cobrirá novamente sua cabeça. Sua luta é com essa doença nunca foi seu cabelo, abra os olhos e se concentre nessa batalha. Confie minha amiga, eu apenas tenho você então levante essa mural e confie em sua capacidade de vencer!"

Escutei seu apelo, ela tinha razão em tudo que falou. Meu medo não é de minha nova aparência mas sim dessa doença.

Abri meus olhos, encarei seu olhar, tentei transmitir um leve sorriso e falei:
- Vocé acertou quase tudo. Tudo sobre mim e nada sobre vocé. Vocé tem muita mais que apenas a mim. Minha familia será sempre a sua familia também. Obrigada vocé é minha companheira uma irmã que eu não tive! Te amo.
Nos abraçamos e só depois me olhei.

Foi diferente, foi arrepiante, mas foi menos dificil do que aquilo que imaginei ser...
De facto a minha essencia era a mesma e minha luta seria continua... Uma etapa a menos em minha lista mental que há muito tempo escrevi mentalmente tinha sido concretizada...
E eu era quem ditava as regras apartir de agora em diante...

Meu chefe rendidoWhere stories live. Discover now