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Capítulo número um: pão com manteiga, ou queijo.

O barulho das sirenes ensurdecia os meus ouvidos, afetando tão aguçadamente a minha audição que deixei os meus dedos encontrarem-se uns com os outros em um punho cerrado. Tudo o que eu queria era que aquele incómodo estúpido saísse de cima das minhas pernas e tronco, de maneira a deixar-me locomover-me novamente. Conseguia perceber a mobilidade dos meus braços a enfraquecer, à medida que deixava o meu corpo ser atingido pelo poder supremo de nervos em um cérebro apertado. O meu sangue já fervia em pouco água, então naquele momento, foi como se nem água existisse.

Abri os olhos demoradamente para que conseguisse habituar-me às fortes luzes que lentamente cegavam a minha íris clara. A primeira coisa que vi depois de os abrir totalmente, foi um bombeiro correr em minha direção, provavelmente querendo ver o que se passava. Embora não conseguisse mexer nada do pescoço para baixo, sabia que o meu corpo não estaria nas suas melhores condições. Sem forças para levantar a cabeça mais do que trinta graus, desisti de tentar descobrir o que havia acontecido a partir do momento em que uma mão sangrenta se localizou diante a minha curta visão periférica. Aquilo era uma mão? Aquilo sequer era sangue? Não foi que eu não quisesse olhar ou que me fosse estranho vê-lo, eu apenas não conseguia mover a minha cara para nenhum dos dois sentidos que ela me permitia mexer.

Mãos enormes agarraram ambos os lados do meu corpo, mesmo abaixo das minhas axilas, enquanto outras similares às que me agarravam fortemente, puxavam com toda a sua força o metal pesado que prendia o meu corpo ao chão da autoestrada. Lentamente o meu corpo começou a ser puxado para trás, enquanto as minhas pernas rastejavam contra o alcatrão escuro. Sangue agora era um dos elementos visíveis pela minha íris, assim como a confirmação da presença de uma mão sangrenta. Infelizmente apenas a mão era visível, pois o resto que a acompanhava, encontrava-se mesmo por baixo do metal preto do carro, que antes estava intacto. Os meus olhos não conseguiram enxergar nada mais, para além daquele pequeno pedaço de um ser humano.

As mãos pararam de puxar o meu imóvel corpo, tentando ao máximo deixar-me confortável ao colocar-me sobre uma maca azul.

Não sabia ao certo, desde quando é que tudo aquilo aconteceu. Penso que talvez seja um dos efeitos colaterais de um acidente. Mas sabia que a reação do bombeiro cujas mãos antes transportavam o meu corpo para fora do local do acidente, não era uma reação assim tão boa. A minha expressão facial era uma autêntica tela em branco.

- Quantos anos tens pequena? - Foi a primeira coisa que saiu dos seus lábios, mesmo depois de várias tentativas para a melhor escolha de palavras que ele poderia utilizar contra uma criança pequena, sem a fazer correr novamente para o local do acidente. A diferença, é que eu não estava com vontade de correr. - E sentes alguma coisa? Dor? Medo talvez? - Lançou-me um sorriso fraco, como se quisesse deixar-me confortável acima de tudo, antes de me estender uma notícia não tão agradável como a maca almofadada que deixava o meu traseiro em uma posição não desconfortável. Eu não sabia o que queria ele dizer com sente, ou o que queria ele exatamente dizer com dor e medo, por isso, em resposta, eu apenas neguei com a cabeça.

Os seus olhos estavam estranhos, provavelmente por ter calhado a ele o papel de contar-me o que se passava, mas o seu sorriso enganador tentava manipular a minha mente, de que nem tudo estava perdido. Em um olhar de esguelha para o local atrás de si, eu soube que tudo sim, estava perdido. Olhei atentamente para ele esperando que qualquer músculo do seu rosto se move-se e o denunciasse discretamente.

- Nove. - Respondi à sua questão anterior, numa voz fraca e baixa.

O homem olhou sério para mim, não conseguindo esconder aquilo que se estava a passar em sua mente. Ele pensava que cada músculo minúsculo do meu pequeno corpo iria tornar-se em vidro, provando ser frágil, e partir-se em pequenos pedaços cortantes e irrecuperáveis. Logo, quando a sua voz soou como que quebradiça, eu percebi que o seu trabalho parecia ser mais difícil do que apenas apagar fogos e resgatar pessoas. Era complicado dizer a alguém algo assim, difícil, e que dita de maneira errada poderia ser fatal. Mas quando o meu estômago dentro da minha barriga deu os primeiros sinais de vida, roncando tão fortemente que até mesmo ele olhou para mim com um olhar novamente estranho, e, eu descolei os meus lábios para me fazer perceber que precisava de um alimento:

- Tenho fome. - Comentei por alto sem sequer olhar nos seus olhos claros que eu sabia que me encaravam inconformados e indignados com o meu comportamento estranho. - Pode me trazer um pão com manteiga, ou queijo? - Não Sorri, mas mostrei-me educada. Assim como o meu pai me ensinara a ser.

O olhar daquele homem nunca foi esquecido pela minha mente, quando de estranho se tornou completamente diferente do olhar anterior. Fazia-me pensar que ele não estava a compreender o que eu estava a tentar dizer e que provavelmente achava que eu estava a pedir algo de outro mundo, mas eu lembrava-me vagamente, de quando o meu pai me dissera que a barriga quando fazia este som, era porque estava com fome e precisava de um alimento para se satisfazer.

Discretamente, o homem olhou para a minha mão encontrando-a com pequenos arranhões nas suas laterais. Tudo naquela noite era escuro e pequeno, assim como a alma que o meu pai havia dito que o meu corpo transportava.

-Talvez fiambre. - Foi tudo o que eu disse antes de lentamente me deitar na maca azul e mirar seriamente o azul frio que dominava o céu escuro. Eu era humana, acreditassem ou não. Apenas não conseguia explicar que a pedra que eu sentia no meu estômago naquele dia, se tornou ainda mais intensa quando lágrimas saíram dos meus olhos. E, nem naquele dia, nem no seguinte, ou no que se seguia ao seguinte, ou mesmo nos restantes que se seguiram; eu consegui compreender ou identificar a razão pela qual chorei e gritei. Nem mesmo quando treze anos se passaram desde dessa mesma noite.

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Eu realmente vou amar escrever isto. Por favor, não me achem insensível.

Este foi o primeiro capítulo da minha história Feal (Feel + Real).

Com amor,
CocoBelln.


Feel Real | H.SWhere stories live. Discover now