Fogo

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Provavelmente aquela era uma das noites mais frias do ano.

As esfarrapadas vestimentas não traziam àquele homem a proteção necessária para protegê-lo da baixa temperatura.

Pelas desertas vielas próximas ele reuniu pedaços de madeira e papel para, acendendo uma fogueira, evitar que o implacável frio lhe ceifasse a vida.

Procurou o beco isolado que sempre costumava usar como abrigo, amontoou o material e, com a ajuda de um velho isqueiro, acendeu uma fogueira. Acomodou-se ao lado dela, buscando algum conforto e passou a divagar, mais uma vez, sobre sua vida.

Antes normal como a de qualquer outra pessoa até que, por obra do destino, tudo pareceu desmoronar. A família o abandonara, perdera o emprego e a depressão, então, tomara conta de sua alma.

Uma alma antes aquecida pelo carinho dos amigos e familiares agora estava vazia e amargurada. Talvez devesse se entregar ao frio e deixar que aquela situação encontrasse finalmente seu término, mas o instinto de sobrevivência o impedia de agir assim.

Ao lado do fogo que crepitava, lágrimas mornas lhe desciam pela face suja e fria.

Antes um homem, agora o quê? Um indigente com o qual ninguém se importava.

O que tinha feito para se tornar o que era agora? Não sabia dizer, suas lembranças não traziam a resposta que tanto procurava.

Imerso em suas dolorosas recordações ele tentava espantar a tristeza, buscando nos labirintos de sua mente algo que o fizesse se sentir menos destruído, algum momento de alegria.

O incômodo assovio do gélido vento que insistia em soprar o trouxe de volta à realidade, quando algo estranho passou a acontecer.

As chamas que lhe permitiam estar vivo pareciam criar vida.

Esfregou os olhos para espantar aquela miragem aterrorizante, mas ela continuava presente à sua frente, num balé que por vezes o fazia se lembrar de sensuais danças femininas.

Não era o movimento normal de uma chama, era diferente. Possuía harmonia, compasso, realmente as chamas dançavam. O fogo parecia vivo.

Assistindo àquele inacreditável espetáculo, algo lhe chegou aos ouvidos: um sussurro. Assustou-se e olhou ao redor, mas não tinha ninguém ali. Palavras desconexas que ele, tapando desesperadamente os ouvidos, se esforçava em evitar ouvir. No entanto elas atingiam diretamente sua mente. O desespero foi se amenizando conforme elas começaram a fazer sentido. Ele se atentou então às palavras que ouvia.

Palavras que há muito não lhe eram dirigidas. Palavras acalentadoras, doces...

Por mais bizarra que a situação parecesse ser, ele começou a se sentir um pouco menos indigente e um impensável sorriso lhe brotou nos lábios rachados pelo frio.

O fogo deixava de lhe aquecer apenas o corpo e agora passava a lhe aquecer a alma. Não com o calor normal, material e físico, mas um aquecimento oriundo de sentimentos que ele parecia não mais se recordar. Sentimentos que afloravam em seu íntimo.

Entregou-se definitivamente àquelas palavras e se sentiu confortável, ainda que sentado sobre o chão frio e úmido daquele beco escuro e imundo.

Estava feliz. Toda a dor e amargura que o acompanhavam desde o desmoronamento de sua vida haviam desaparecido milagrosamente.

Encostou-se na parede embolorada e apreciou aquelas palavras que soavam como doce melodia aos ouvidos. Palavras que imaginou nunca mais ouvir.

Tranquilo, ele adormeceu com seu corpo e sua alma totalmente aquecidos. Finalmente estava livre dos tormentos que o afligiam minuto após minuto desde que sua vida virara desmoronara.

Dormiu com um doce e cativante sorriso nos lábios.

Pela manhã a polícia foi acionada. Em um beco deserto do centro da cidade um corpo carbonizado fora encontrado.


Fragmentos do HorrorWhere stories live. Discover now