Prólogo

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A vida nunca mais vai ser a mesma e eu não lamento por isso. Sem ela na minha vida e à procura de me adaptar a essa ausência espero me tornar alguém diferente, um pouco neutro às situações constrangedoras. Me pego ouvindo aquela voz quando faço algo escondido por pensar que ela pudesse se chatear e se irritar mesmo não estando mais aqui.

— Mas que diabos eu estou fazendo? – paro de olhar em volta preocupado em ser pego por beber diretamente do gargalo da caixa de leite – Não tem ninguém aqui!

Não me mudei depois do incidente, gosto do meu chalé e essa brisa de tranquilidade que sopra das montanhas onde parece que o mundo que conheço não passa de um trecho em um livro qualquer. A brisa vem fresca quando sopra do lago e renova o estoque de inspiração que há tempos venho procurando, mesmo que o cheiro das roseiras atrapalhe minhas memórias. Mas eu que plantei, me sinto acompanhando, uma companhia agradavelmente sombria e persistente, não são apenas rosas, é ela, ou o que restou dela depois desse tempo lá embaixo fazendo companhia para ele, mas isso é o que menos importa, eu não tinha mesmo onde escondê-lo.

As primeiras semanas eu consegui ficar longe da polícia e dos investigadores, tentei ser normal, pentear o cabelo e comprar roupas novas. Parar de comer apenas porcarias, procurar uma mulher para substituir a falecida e contratei outra doméstica, alguém menos enxerida e mais discreta. Mudei tudo, até móveis eu arrastei para dar outra imagem para a casa. Cuidei do jardim e decorei o túmulo do Stephen, meu cão.

Hoje faz exatamente um ano, um ano e eu estou tentando não me esconder de ser pego bebendo leite da caixa dentro de uma casa vazia. São seis horas da manhã, prefiro dizer... madrugada, e meu sono fugiu de mim mais uma vez, o sol começa a brilhar as margens do lago Ackley Pond

Olhando para as águas calmas pelo vidro da janela penso em como nunca passou pela cabeça me mudar daqui, não, nunca me mudaria da pacata Cutler. Isso me faz escrever como se não houvesse pessoas no mundo e eu não tivesse que me preocupar com a decadência da minha vida profissional indo pelo ralo.

Parei, literalmente parei de tentar em vão deslizar os dedos no teclado do computador e finalizar uma frase decente. Preciso trabalhar, mas não é algo desesperador, ainda recebo os royalties dos antigos contos que escrevi. O total exato eu não sei, mas no começo era um atrás do outro, coisas bem comerciais. Agora eu só tenho o desejo de escrever outro best-seller como foi A Menina do vestido Bordô.

Levei menos de três meses para escrever o romance com ajuda da falecida. O motivo foi verdadeiramente um vestido bordô. Clair havia comprado no nosso aniversário de cinco anos de casamento para um jantar simples que planejava todo ano na mesma data. Era um vestido bonito, mas havia aquelas segundas intenções em ser provocativo. Ela usou o vestido um dia sim e dois dias não enquanto eu escrevia o livro. Foi dedicado ao vestido no final das contas, mas Clair sabia que sem ela não teria tido o mesmo efeito.

Mas agora, como? Ainda vejo o sangue dela escorrendo no jardim e o cheiro de cigarro barato que impregnou no meu escritório. Não! Eu definitivamente não sou mais um escritor e minha vida se transforma em uma patética existência sem um pingo de poesia, nem ao menos uma saudosa gota de ironia.

Vou até o banheiro para molhar o rosto com água fria e escovar os dentes. Evito me olhar no espelho, não sei onde coloquei o pente de cabelo e não quero ver meu próprio reflexo me incriminando por entrar na mesma rotina de um ano atrás. Meus olhos exaustos de noites mal dormidas combinam perfeitamente com a cor do whiskey no copo ao lado da cama.

É hora de tentar! Meu estômago está forrado pelo leite me incapacitando de tentar comer outra coisa. Sento na cadeira nova de escritório e me debruço sobre ela a fazendo balançar algumas vezes enquanto observo a tela do monitor inicializar o sistema operacional do computador. Tenho uma péssima mania de morder lápis e novamente estou eu acabando com a ponta de outro. Depois fico tentando acertar um vaso vazio que fica no andar debaixo sobre a mesa de centro. Nunca acerto. O computador já está ligado, abro o programa de edição com uma página em branco e me jogo na cadeira a fazendo balançar novamente.

É quando começa a minha tortura, limpo o teclado, olho para a tela vazia, observo mais uma vez as teclas a minha frente e passo os dedos novamente sobre elas. Pego a mola de espantar tédio sobre a escrivaninha e estico-a algumas vezes observando suas cores se misturando com a velocidade que se contorcem. Guardo a mola na gaveta para que eu não tenha outras distrações. Olho para a tela em branco e apoiando o cotovelo sobre a mesa eu mordo o mindinho encarando a folha em branco. - Que merda, vamos lá O'Connor!

Já sentiu o silêncio te incomodar? Esse silêncio me incomoda, nem passarinho, mosca ou inseto. NADA. Nada para me tirar a concentração, e quando olho para a tela com a folha em branco e o ponteiro piscando esperando por uma ou duas palavras eu me vejo pensando naqueles cabelos louros novamente. E aquele sorriso? Eu não sou de sorrir nem quando via aquele sorriso, gosto de sorrir por dentro, meus lábios desaprenderam a sorrir e eu nem me lembro quando aconteceu.

Não adianta, nada sai. Pensei em algo fantasiado para alcançar o publico infantil porém duvido que alguém com a mínima decência compraria um livro de Josh O'Connor para uma criança. Quem sabe outro conto erótico? Outro assassinato? Outra história clichê de mocinho e bandido ou outro casal como Romeu e Julieta? Aliás, não são essas as histórias mais vendidas no mundo? Quando eu comecei era tudo tão fácil, era como se não existissem livros no mundo e que esse ramo fosse uma folha em branco para que eu pudesse preenchê-la com todas as histórias que eu quisesse. O mundo era meu que já tinha sorte em ter nascido homem e não passar por preconceito de escrever um romance erótico sem ser tachado de "vagabundo". Porque aquilo continuava sendo uma arte.

Eu tinha leitores aos meus pés, eu era casado com a mulher da minha vida, eu podia comprar quantas casas tivesse vontade e enchê-las de parafernálias inúteis. Eu era admirado e respeitado, tinha seguranças na minha porta e motorista sempre disposto e gentil. Eu era tudo e tudo o que eu era eu escrevi.

Hoje? Eu não passo de uma sombra que constrange as pessoas da minha cidade. Não posso sair sem alguém me olhar com aqueles dizeres estampados: Eu sei que foi você. Quem mais me daria créditos? Como eu posso escrever para as pessoas sabendo que elas me acham uma aberração?

Eu escapei, mas isso é o de menos. Talvez na cadeia eu tivesse histórias mais interessantes para retratar do que observar os pássaros comendo as migalhas de pão na varanda.


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