Seja Feita À Sua Vontade

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     Gabriel nunca havia estado na delegacia de Santo Antunes antes. Era algo que definitivamente não estava em seus planos. Não foi uma experiência muito agradável. Mas depois de praticamente um dia inteiro na companhia de policiais atarefados e intrigados, algumas coisas foram esclarecidas. Ao menos as partes que diziam respeito ao menino. A polícia estava certa de que a autora dos crimes fora Alexia. Quando Gabriel saiu para o dia que brilhava do lado de fora da delegacia, o sol quase lhe cegou os olhos. Precisaria de mais alguns longos minutos para se acostumarem com a claridade do dia. Seus pensamentos davam nó. Quando se lembrava daquela figura atormentada naquela cadeira de rodas, sentia pena. Mas quando lembrava de que fora ela a assassina de sua queria avó, sentia raiva. Mas a raiva era sempre sobreposta pela comiseração que sentia por aquela pobre criatura frágil e perdida em suas própria ilusões perigosas. E em seguida, lembrava de dona Dalva. Era uma senhora tão doce e bondosa. Amava e cuidava de Gabriel como se o rapaz fosse feito de porcelana. Tanto carinho e cuidado. Lágrimas começavam a escapar-lhe dos olhos conforme ele concluía que jamais veria aquele sorrido bondoso novamente. Nunca mais tomaria aquele chá natural com leite. Ou o café com creme chantili feito em casa. Nunca mais a abraçaria, sentindo aquele cheirinho de perfume misturado com o cheirinho natural de gente idosa. Nunca mais. E então, a imagem do corpo da doce senhora ardendo nas chamas, em uma morte horrível.
       Mas a tal de Alexia, era uma criatura perturbada. E por maior que fosse o sofrimento que ela lhe causara, ele não conseguia sentir ódio dela. Apenas uma lástima intensa e confusa.
       Queria conhecê-la, por alguma razão que não entendia. Mas não seria fácil. A própria polícia, com todos os seus recursos e força de vontade, estava tendo dificuldade em encontrar o paradeiro da menina. Que chances tinha Gabriel, um mero estudante nessa empreitada. Ela havia assassinado a sangue frio o delegado deles, se aqueles policiais motivados não conseguissem encontrá-la, ele não tinha um pingo de chance.


       Alexia estava completamente embriagada e em um estado emocional sofrível. Nícolas nunca a vira assim antes. Era definitivamente uma situação extrema. O subsolo do fundo do poço para a pobre Alexia. Nícolas pegou sua criança no colo, como já fizera tantas outras vezes na vida, e a colocou deitada na cama. Levantou a cadeira de rodas da menina e deixou-a ao lado da cama. Abraçou a filha intensamente, sentindo-se indescritivelmente mal. Nícolas sentia-se perdido e absurdamente vazio. Ligou para Ana e pediu, sem nenhum tipo de emoção, que ela viesse ao hotel. Pelo tom de voz do ex-marido, Ana se deu conta de que era algo muito sério. Não questionou e foi para aquele lugar horrível, que ela tanto abominava.
       — Pai, quando eu era criança as pessoas gostavam de mim de graça. Eu não precisava me esforçar para agradar ninguém. E além disso, eu não me preocupava se estava agradando alguém ou não. Eu me sentia feliz, embora não fosse.
       Nícolas acariciava-lhe a cabeça carinhosamente. Fitando o teto em desilusão completa, e com a voz embargada a menina continuava:
       — Agora que eu sou adulta, é preciso de muito para conquistar alguém. É preciso um esforço muito grande para fazer as pessoas gostarem da gente. E mesmo assim, não é o suficiente. A gente se esforça pra fazer tudo de bom, e ainda existe uma enorme chance de as pessoas interpretarem mal seu esforço para agradar. É muito difícil ser adulta, pai.
       Ela disse isso olhando para Nícolas com o olhar mais triste que já existiu no universo, na concepção de Nícolas.
       — Quando a minha infância foi embora, tudo o que ficaram foram os pesadelos. — suspirou.
       — Eu sei, Alexia. As pessoas são uma bosta. Ou a gente se esforça para sermos melhores que nós mesmos, ou sucumbimos às opiniões descuidadas e  medíocres das outras pessoas.
       — Alexia, eu só quero que você seja feliz.
       — Pai. Você conhece alguém que seja feliz? Completamente feliz?
       Nícolas não respondeu.
       — Esse mundo simplesmente não para mim, pai.
       — Por favor, Alexia. Não diga essas coisas. Você não sabe como me dói ouvir essas palavras.
       — Eu fiz muitas coisas erradas. Eu acho que fui realmente eu quem matei aquela senhora tão boazinha. Por minha culpa o neto dela deve está na prisão a essa hora. Eu matei aquele mendigo que morava aqui. E por minha causa, milhares de pessoas morreram em Sobrado.
       — Alexia. Descanse. Por favor. Amanhã conversaremos mais.


       A jovem Gabrielle já havia partido quando Nícolas foi checar se ela estava bem, e precisando de algo.


       Gabrielle morava na área rural de Sobrado, com o pai. Era um lindo passeio até sua casa. As estradas que cortavam as lavouras e os caminhos rodeados de grandes árvores deixavam Gabrielle fascinada. No final a estrada serpenteava por vastidões verdejantes, com lindas montanhas que se erguiam no horizonte.
       — Me desculpe, filha. Fazer você passar isso. Chegar perto daquela gente... daquele homem endemoniado. E passar a noite naquele bar e ainda ter que dormir naquele antro de espíritos malignos.
       — Tudo bem, pai. Eu sei que é para uma causa maior, não é?
       — É pelo Senhor! É para a obra do nosso Senhor! — exclamou Heber.
       Gabrielle era uma menina de fé. Mas questionava, no segredo de sua mente, os métodos do pai.
       — Como vamos fazer, pai?
       — Você vai precisar trazer ele de volta para Sobrado.
       Gabrielle pensou um pouco, indecisa.
       — Precisamos mesmo fazer algo tão extremo?
       Com os olhos na estrada e o pensamento na vingança, Heber respondeu:
       — Precisamos fazer o que Deus nos manda fazer, sem questionar. A família dele é amaldiçoada. Precisamos por um fim no que Arthur começou. Aquele feiticeiro maligno. A culpa não é nossa. É de Arthur.
       — Pobre Nícolas. Não temos como curá-los, pai?
       — É tarde demais para eles, minha filha.
       Heber passou a mãe gentilmente nos cabelos dourados da filha.
       — Amanhã vamos bolar umas ideias legais e depois de amanhã você vai trazer ele pra Sobrado.
       — Ah, pai. Eu não sei se consigo. Não sou nenhuma sedutora, ou algo assim. Não levo o menor jeito.
       — A carne é fraca, Gabrielle.
       A garota não gostou daquela observação. O que o pai queria dizer com aquilo? Gabrielle detestava os métodos exagerados do pai, mas não ousava trair as intenções de Deus.
       — E a filha deficiente dele? — Gabrielle perguntou depois de um longo silêncio.
       — Ela já está condenada. Sua alma está sendo corroída de dentro para fora. E a polícia está atrás dela. Precisamos focar em Nícolas.
       — Plano B? — Gabrielle quis saber.
       — Plano B? Envenena ele você mesma.
       — Pai! — advertiu a menina.
       — É a vontade de Deus. Ou você prefere queimar no inferno? Deus adora fazer isso com desobedientes.
       Gabrielle baixou a cabeça e concordou. Ao ver a reação da filha amada, Heber sorriu.

       — Ah, leva isto naquela sua malinha de guardar o violino.

       O homem exibiu um velho rifle.

       — E mais um detalhe... ou ele, ou esposa. Um deles tem que morrer no próximo capítulo dessa história toda. Confio em você.

       Heber fechou os dedos da filha em torno do rifle e piscou para ela.


A Cidade dos EsquecidosWhere stories live. Discover now