Grande Obra de Todos os Tempos

787 88 116
                                    

Com um gesto que afastou o suor da fronte, Liang interrompeu a caminhada para descansar sob a sombra de uma fileira de juníperos, sua parte favorita da pequena estrada que unia o palácio do imperador Qin Shihuang à sua casa. Não que pudesse contar que ali era seu lar: desde que se viu órfã após um massacre que dizimou a horda de guerreiros que protegia o reino, entre os quais estava seu pai, Liang foi acolhida por aquele a quem agora servia.

Estava insatisfeita com a vida que levava. Queria ser a autora da própria história, contar de grandes feitos, desbravar reinos distantes. Porém, a realidade da fome e do frio a fizeram buscar abrigo na casa do velho alquimista Jian, que propôs guardá-la em troca de serviços domésticos e ajuda em seus experimentos. Afinal, ainda era uma garota de quinze anos, desprovida da malícia necessária para sobreviver neste mundo.

Como um dos sete membros do Círculo de Alquimia do reino, Jian passava longas horas em um quarto escuro e quente experimentando elementos e manipulando minérios e plantas na tentativa de criar ouro, o mais precioso dos metais. Seu ofício de alquimista era um segredo que poucos conheciam e, por isso, corria à boca pequena pelas esquinas e plantações da cidade que Jian era um perigoso feiticeiro.

Enquanto se aproximava da pequena construção de pedra em que morava, Liang lembrou-se de quando seu mestre lhe contou sobre como a busca pelo ouro era não somente uma procura material, mas uma empreitada dotada de motivação espiritual: transformar metais comuns em ouro seria uma forma de libertar a essência divina que existe em todas as coisas, o que poderia finalmente ser utilizado para criar o lendário elixir da vida.

Naquela tarde, Liang estaria sozinha, pois seu mestre se encontrava em uma secreta expedição para recolher materiais de pesquisa e só retornaria na manhã seguinte. Um amargor em seu âmago a fez lembrar de quando seu pedido de ser treinada para um dia entrar no Círculo dos Alquimistas foi rejeitado pelo velho mestre. A arte de aperfeiçoar os corpos com a ajuda da natureza era restrita aos homens, ao passo que as mulheres deveriam se empenhar em lhes servir de suporte, sem jamais proceder por si próprias às experimentações. Ao perceber sua tristeza, no entanto, Jian concordou e ensinar-lhe rudimentos da alquimia e permitir que estudasse os livros de sua biblioteca e, assim, contava com sua ajuda em experimentos mais simples.

A passos arrastados, a menina entrou em casa e se dirigiu ao pequeno laboratório. Ali, encontraria materiais para realizar sua tarefa naquela tarde: preparar uma encomenda de perfumes para a imperatriz.

Liang verificou se na bancada estavam os ingredientes de que necessitaria: álcool de cereais e óleos aromáticos e essenciais para as notas de cabeça, de topo e de fundo. Descobrira seu talento nos primeiros dias de aulas com Jian e se tornara responsável por abastecer pessoalmente a penteadeira da imperatriz com seus bálsamos. Com isso, ganhara também livre acesso ao palácio.

Contudo, guardava consigo um segredo que a ninguém revelara, nem mesmo a seu mestre: descobrira, ao manipular elementos no laboratório de alquimia de Jian, que nascera com aptidão para magia. Era um dom raro naquele reino, visto com reserva pelos mais velhos e com inveja pelos mais novos, mas o destino de quem revelasse sua dádiva seria invariavelmente o mesmo: trabalhar diretamente para o imperador dentro dos limites de seu palácio. Geralmente, a pessoa jamais era vista novamente pelo povo. Dizia-se que, em seu delírio de imortalidade, Qin Shihuang mantinha próximas de si não somente seus alquimistas, mas também seus chenbais, como eram chamados os nascidos com magia, para empregarem suas habilidades no intuito de aliviar suas dores e as mazelas da doença que o acometia.

Liang não concebia revelar a ninguém seu segredo, mas lançava mão de seus poderes para trabalhar com seus compostos perfumados. Cada chenbai nascia com um tipo distinto de magia: manipulação das forças da natureza, habilidade de compartilhar sensações físicas, capacidade de gerar empatia em quem quer que fosse... Sua destreza, porém, parecia mais complexa que aquelas das quais já ouvira falar: Liang compreendia a composição de cada elemento em que pusesse os sentidos.

Grande Obra de Todos os TemposWhere stories live. Discover now