Amigo ?

39 4 1
                                    

Com nove anos já poderia me considerar só. Minha mãe tinha desistido do meu pai, então foi embora. Depois disso, meu pai arrumou outra pessoa, e também foi morar em outro lugar. E eu? Eu fiquei com a minha avó. Em uma casa com nove pessoas. Sendo o mais novo, e nem um pouco querido. Atenção não era uma das coisas que mais tinha, então, passei a ficar na rua, e aprendi que o mundo tem muito a ensinar...



Era um garoto comum, nada em especial. Gostava de jogar bola, não era lá muito bom. Tinha amigos na escola, tinha meu primo que era com quem mais passava o tempo, e como quase todo garoto, mentia. Mentia muito. Era mestre na arte da mentira. Tão bom que até hoje tem algumas mentiras vivas por aí.

Quando criança odiava sair com alguém mais velho, por que eu carregava os sacos, tinha que pegar as coisas, e odiava ser chamado atenção, então, quando a minha avó queria sair, eu simplesmente sumia, ou então fingia estar dormindo. Essa tática não funcionava. Mas a parte de sumir, sim. Passava horas na rua, indo de um lugar a outro.

Não conheci ninguém que mereça aparecer por aqui, mas aprendi muito. Aprendi que quando se está na rua, precisa de dinheiro. E pra conseguir passei a pegar. Pode classificar como quiser. Antes que minha avó decidisse sair, se tivesse dinheiro por aí, sem dono, era meu. Só que tinha dono, e aí a mentira era a minha salvação. De início funcionava, mas depois de um tempo ninguém passa a cair na mesma mentira.

Meu histórico com mentira não para por aí, eu perdi muito por isso. Primeiro foi a confiança dos meus familiares, depois foi uma pessoa. Uma pessoa muito importante para mim.
Entre quatro primos, eu era o menos querido. Na missa, era visto como o deixado pelos pais. Na rua como o sem rumo e em casa, como o nada. Não era visto dessa forma por todos, para a minha sorte, no mundo existe pessoas com algo diferente e dispostas a ajudar.
Tinha uma tia, Suzana, ela era bem durona, sempre pegando no meu pé pra estudar, nos afazeres, pra não ficar na rua. Eu odiava isso. Odiava essa "atenção" que ela tinha comigo, na minha cabeça ela me odiava. Me perseguia, por estar "só".
Hoje adoro essa mesma tia. Percebi que todo sufoco que ela me dava, era porque se preocupava comigo.
Aí tem uma questão boa e um clichê bem conhecido. Quem te ama, te repreende. Hoje sei que é verdade. Sei como é chato ser repreendido, principalmente para uma criança. Acho que o problema não é não gostar disso, e sim nunca perceber que quem nos quer bem, sempre vai ser o mais chato as vezes. Eu entendi isso, depois de muito tempo.
Espero que você entenda também.

********



Talvez o melhor de ser criança são as experiências. Experiências que as vezes levamos para o resto da vida. Algumas ótimas, outras, nem tanto. Porém todas são importantes.
Uma dessas experiências é o primeiro amor. O amor bobo. Amor com carta. O sorriso por um olhar. Questões para assinalar ; quer ser minha amiga ? Quer ser minha namorada ? Passei por isso. E quem não passou na infância, vai passar em algum momento, é a realidade. O amar quando se é criança tem algo único, a ingenuidade e a sinceridade. Não temos medo dos erros, nem nos preocupamos com aparência, é o amor puro e verdadeiro.

Gostei de uma guria, Glicia. A conheci na escola primária. Ela era magnífica. Cabelo preto, pele clara. O sorriso... Posso até dizer que lembro do cheiro que ela tinha. Lembro de como chegava todas as manhãs bem cedo, só pra ficar admirando ela brincar...

Porém... a Glicia tinha que ser sobrinha da dona da escola, o que me causava um pânico absurdo, hoje não entendo exatamente o por que, mas naquele momento, ser sobrinha da dona na minha mente, fazia dela a garota mais difícil que eu poderia ter "decidido" amar.

Você lembra do seu primeiro amor? Sabe, aquele frio na barriga. Aquele desespero quando vê a pessoa se aproximar. O sorriso bobo. A vontade de fazer a maior loucura só para ter aquela pessoa ao seu lado? Passava por isso todas as manhãs, e adorava. Era o melhor momento do meu dia. Quando não lembrava que meus pais tinham me deixado para trás. Que não me sentia feliz naquela casa. Que além dos problemas, tinha um bom motivo pra acordar bem cedo, e me sentir o garoto mais feliz do mundo. No recreio sempre arrumava uma desculpa para poder ficar mais próximo possível. Só que Glicia sempre foi uma ótima garota, e dava atenção a todos. Aí que o coração de um menino se desesperou. Tinha que fazer algo, algo que fizesse com que ela lembrasse de mim, sempre. Que quando ela olhasse para mim, lembrasse que fiz algo bom. Aí tive a ideia de uma carta. A minha primeira carta, a primeira de muitas que vim a escrever depois disso.
Infelizmente não lembro bem oque estava escrito na carta. Mas vou tentar...

"Oi Glicia. Eu estou escrevendo porque gosto de você. Por favor não conta isso para ninguém. É um segredo nosso. Eu queria saber se você gosta de alguém. Parece que você e o Pedro estão namorando, e fico triste com isso. Mas eu gosto de você e quero saber se você quer ser minha namorada ( ) ou você quer ser minha amiga ( ). Eu te amo. Segredo ta?"

É... sempre fui bem direto e intenso. Pena que nunca soube a resposta.
No dia que fui entregar, meu primo, Mateus, foi comigo, camaradagem sabe...
Eu estava morrendo de vergonha e muito nervoso. Então entreguei a carta para o Mateus e ele foi entregar. Fiquei próximo pra ouvir o que ele iria dizer.

" Ele chamou - Glicia

Ela respondeu - Oi...

Ele disse - meu primo quer te dar uma coisa...

Ela respondeu - o que ?

Ele disse - isso aq... "

Quando ele iria entregar, como um louco, sai correndo em direção a eles. Pulei em cima do Mateus, peguei a carta, ele tentou pegar a carta da minha mão. O desespero era tanto que comecei a bater nele. Peguei a carta, levantei e sair correndo... Corri, corri, corri muito. Cheguei em casa, fui para um lugar que não estivesse alguém vendo, e comecei a chorar...
Quando meu primo chegou em casa, ele disse que Glicia ficou assustada. Ele perguntou o que aconteceu e eu disse ; eu a amo, mais o medo foi mais forte, desculpa. E voltei a chorar. Não falamos mais disso.
Hoje ele ainda usa isso as vezes pra me irritar.

Desde cedo aprendi. O medo não nos leva a nada. Quando você para pra pensar, você passa a ter dúvida, e não existe inimigo pior que a dúvida. A dúvida te consome, destrói toda a sua força. Meu primeiro amor perdi por medo e dúvida. Meu primeiro amor nem cheguei a saber se me amaria. Se seria minha namorada ou minha amiga, perdi duas coisas importantes, por dúvida e medo.

Hoje não sei nada sobre a Glicia. Não tenho contado, nem sei como ela está, se está só ou com alguém. Espero que esteja bem, e se não estiver, vai ficar... acredite. E desculpa por usar seu nome assim, mas olha o lado bom. Qual cara que gostou de você te deu um capítulo de um livro? Falou tão bem sobre você para outra pessoa? E além de tudo, foi sincero com você ?

Obrigado por me ensinar involuntariamente que um sorriso bobo vale mais que beijos toscos. Um olhar sincero vale mais que palavras passageiras, e que o medo é ridículo.

A escola continua lá, as vezes passo em frente e penso em ir até a tia dela perguntar, mas até hoje, meu medo me consome. Quem sabe, um dia...



********

Ouça

Perfectly - Chelsea Lee

Todo mundo tem o mesmo sonho antigo

De um amor que funciona perfeitamente

Mas quando um coração trabalha enquanto o outro não bate

Então o amor pode viver, mas não é assim que deve ser

Mas você foi perfeitamente adorável

Perfeito para alguém que não euE querida, eu sinto muito, eu tenho mantido você

Eu apenas não posso deixar você.



Capa: pixabay











Estranha MenteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora