Capítulo 04

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Assim que o Allan sumiu da minha vista, virei para o quarto e senti minha irritação tomar conta.

Peguei a cadeira onde passei os últimos dias sentada velando pela vida daquele humano miserável e a quebrei com força na parede.

— Eu sou Kílhet Laurien, a anja noturna. Eu sou a sombra que caça sorrateiramente os guardiões. Sou filha do grande demônio Drakon.

Rasguei lençóis, quebrei parte da cama. Deixei o quarto em um caos completo. Assim como eu estava.

— E isso acaba aqui.

Desci e paguei as despesas pelo quarto e pela comida. Rastreei a minha presa até a praça. Ele parecia mais tranquilo ao conversar com os outros soldados.

Deve achar que desisti de segui-lo.

Acompanhei-os de longe até o acampamento. A noite chegava rápida. Misturei-me às sombras e me aproximei da tenda hospitalar. Ouvi a conversa entre o médico e o Allan. Mesmo que amputassem sua perna, suas chances de sobreviver eram realmente pequenas. Vi o dilema e a dor da decisão no seu rosto. Perder a perna não é algo fácil, ainda mais quando se tem vinte e poucos anos, no frescor da vida.

Por que estou me preocupando com seus sentimentos? Logo ele não estará mais vivo para se preocupar com sua perna.

O médico deixou a tenda, e Allan levou algum tempo para dormir. Provavelmente ficou se torturando com a ideia de perder a perna.

Passei algumas horas imóvel, esperando todos os outros soldados feridos caírem no sono. Me aproximei do Allan. Seu machucado exposto estava com uma aparência péssima e estava se espalhando pelo resto da perna. Ele não sobreviveria. A medicina podia ter avançado muito, mas ainda não era o suficiente.

Ele vai morrer de um jeito ou de outro, melhor que seja pelo meu beijo. Muito mais rápido e menos doloroso. Não que eu realmente me importe como ele vai morrer.

Cheguei tão perto de seu rosto, que sentia sua respiração em mim. Ele se mexia muito e produzia grunhidos baixos.

Em um impulso, contornei seu maxilar com meu dedo indicador. Ele abriu os olhos e me encarou fixamente.

— Você veio me matar?

— Sim.

— Por quê?

— Eu não preciso de um motivo. Somos inimigos, ponto final.

— Não, não somos. Mas não faz muita diferença, não é? Eu vou morrer por você ou pela minha perna. Sabe... Quando você me tirou do campo de batalha, achei que você fosse um anjo. Eu lembro de ter visto asas e achar que estava voando. Você me deu água e me segurou nos seus braços. Primeiro pensei que havia morrido, mas quando acordei naquele quarto da estalagem... acreditei que você era mesmo um anjo e que havia me salvado. Agora desejo ter morrido, sem muita noção das coisas, sem sentir dor. Eu estava escapulindo para o braço da morte e você me puxou de volta para o nosso mundo. Para me matar. Por quê? Somos ambos guardiões. Por que não me deixou morrer? Parece que o meu destino está definido mesmo. Eu só quero ser deixado em paz. Quero morrer em paz, por favor. Você não é um anjo. Você é alguma criatura cruel. Se você fosse mesmo um anjo, você me curaria. Você não deixaria eu perder a perna. Eu estou com medo, Laurien, e você aqui só piora a situação.

Olhei para seus olhos sérios e quis ser a pessoa que ele pensou que eu era. Levantei abruptamente e deixei a tenda. Abri minhas asas imponentes e voei pelo céu noturno sem rumo.

Voei e voei por horas sem fim. Para ser essa pessoa era necessário fazer algo bom. Completamente o oposto da minha natureza. Eu queria que ele continuasse me vendo como o anjo que o salvou. Só que eu não era esse tipo de anjo, eu era uma anja negra, o meu propósito era criar o caos.

Voei para muito longe, para um lugar onde meses atrás eu rastreei um anjo local.

Achei-o facilmente. Assim que pousei perto dele, ele entrou em modo de ataque.

— Não vim causar problemas.

— O que você quer, criatura?

— Preciso que você cure alguém.

Ele me olhou incrédulo.

— Você acha que vou cair em tal armadilha?

— Não é uma armadilha. Se eu quisesse matá-lo, já o teria feito tempos atrás.

Ele avançou na minha direção, permaneci parada. Desviei de um soco no rosto e de outro no estômago. Ele atacou mais algumas vezes, mas não retruquei nenhuma vez. Eu não estava ali para brigar.

— Eu disse que não é uma armadilha. Preciso que cure um guardião e eu não sei onde está o anjo dele para interferir.

Ele parou de me atacar e pareceu um pouco menos desconfiado.

— E por que você quer salvar um guardião? Não faz nenhum sentido.

— Não precisa fazer sentido. Só cure ele, por favor. Não é para isso que vocês servem? Vou ficar te devendo uma.

Ele me olhou meio atravessado, mas concordou com a cabeça.

Nós voamos a manhã inteira até o acampamento. Nos esgueiramos até a tenda médica, eles estavam preparando o Allan para realizar a amputação. O anjo se tornou invisível para o restante dos humanos e adentrou a tenda. Ele apertou o machucado de outro soldado, que passou a berrar de dor. O médico e as enfermeiras correram para acudi-lo, o anjo aproveitou para se aproximar de Allan, colocou sua mão em cima do ferimento, uma luz saiu de sua mão e a perna se curou.

Allan olhou atônito para sua perna se regenerando na frente dos seus olhos. Ele olhou em volta tentando entender o que estava acontecendo. O anjo veio até mim depois de curá-lo.

— Só fiz isso porque ele é um guardião. Deveria ser outro anjo aqui,o anjo dele.

— Eu sei. Obrigada.

— Você está me devendo um favor, criatura vil. E um dia eu irei cobrá-lo. Agora preciso ir.

Nossos olhos trocaram faíscas e ele desapareceu em direção ao céu.

Allan estava salvo. Mas o que isso significava? Isso fazia de mim uma boa pessoa e eu não era uma. Nem alma eu tenho.

Abri as asas e voei de volta para a cidade. No meio do caminho, minha garganta fechou e fiquei sem ar. Me debati no meio do ar e caí na floresta abaixo. Passei a arranhar minha garganta em desespero, até que voltei a respirar, mas minha asa direita doía terrivelmente, e não era por causa da queda.

Olhei para o lado, e no chão, em meio a folhas secas havia uma pena da minha asa. Ela estava enrugada, feia, com uma aparência fúnebre. Chequei a asa direita e a dor era proveniente de uma pena que faltava. Era a segunda vez que isso acontecia.

Como é possível? Minhas asas são mágicas, as penas permaneceram saudáveis por todos os milênios que eu existo e mesmo quando caem em brigas, nunca chegaram a doer. Algo estranho está acontecendo e tem a ver com o guardião.


Vinte e Uma PenasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora