3. AGORA SOU ARTÍSTICA

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Hoje é quarta.

Dia que meu estimado reitor determinou como última instância para abafar meu instinto de arruaça. Ou, última tentativa de evitar que a filha do melhor amigo abandonasse os estudos e vivesse de artesanato no litoral.

Cheguei a marcar no calendário todas as quartas em que estarei presa nesse pesadelo teatral. Tentei inventar alguma história para faltar a aula, mas mamãe certamente diria que o meu futuro está no diploma que insisto em protelar e Seu Gigi viria pessoalmente me arrastar para o campus. Não é exagero, o homem nunca volta atrás no que diz. Assustador.

O que pensei, então?

Que chamar minha melhor amiga para me acompanhar nesse primeiro dia, seria a dose perfeita de apoio emocional que eu precisaria, ou que, pelo menos, ela bolaria um plano que me salvasse da detenção, sem que eu perca a chance de me formar no final do ano.

Apesar de louca, sei bem que se não me formar vou morar com papai na fazenda. Imagine só, viver com as mãos nas tetas das vacas. É preferível suportar o insuportável, desde que eu tenha meu ar condicionado a disposição. Meu pai, após o divórcio, decidiu "viver do que a terra dá", vendendo tudo que tinha e mudando de mala e cuia, para um terreno recém comprado no interior do Estado, onde nem mesmo o sinal de qualquer operadora de celular conseguiria alcançar.

Na época, lembro que achei chique ter um pai com fazenda, acho que até me gabei com alguns amigos, até saber que para conversar comigo, meu querido progenitor precisava se dependurar em uma palmeira, a fim de conseguir uma mísera gota de rede.

Porém, a pior parte foi receber as fotos do banheiro super econômico que ele havia montado na parte exterior da casa. Me imaginei no meio da madrugada tentando fazer o número dois, correndo em meio ao frio e ficando de cócoras naquele buraco estranho, no escuro, enquanto seria devorada por algum animal selvagem.

— Dai-me paciência — resmungou Amélia, enquanto me arrastava.

A ideia de tê-la comigo nesse momento começou a não soar tão atraente. Encarei o prédio a minha frente e quis me enfiar no buraco mais próximo. Meu bolso vibrava, com cinco novos e-mails de Risolda, minha chefe no núcleo de pesquisa, certamente cobrando coisas que eu prometi fazer e não fiz, já que estava naquele momento no castigo. Meu surto interno foi cortado ao ser agarrada em um abraço esmagador.

— Querida... — pedi, na falha tentativa de escapar — Você poderia se afastar um pouco pra que eu tenha a possibilidade de sair correndo?

— Meu Deus — Amélia ri, super encantada com o fato de eu estar surtando.

Minha amiga coloca as mãos na cintura, faz um bico e inspeciona todo o perímetro. Percebo que ela tomba a cabeça para o lado, encarando com uma careta a porta coberta de glitter que dá acesso ao auditório.

— Isso sim é inédito — diz — E eu achando que já tinha visto de tudo nessa universidade.

Encaro suas mãos, enquanto ela abre o zíper da mochila surrada, puxando uma garrafa de plástico com estampa da Barbie. Assim que a tampa é rosqueada, o cheiro forte de álcool sobe, fazendo meu nariz arder.

— Vodka? — ela oferece, aparentando estar preocupada.

A repreendo com os olhos. Ela ergue as mãos, se mostrando um pouco envergonhada. Devo admitir que esse simples gesto pode se caracterizar como uma vitória, já que palavras que remetem a "eu estou errada" não costumam sair muito da boca dela.

— Não sou muito de me preocupar com as coisas, você sabe — começa a murmurar, abraçando os meus ombros — Mas isso aqui não parece ser a sua vibe — aponta para a porta chamativa — Se eu fosse você, levaria a Barbie. — chacoalha a garrafa diante dos meus olhos.

Série CCS: Amor e Outros SurtosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora