1- A SELVA

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— Essa é a minha decisão final.

Observei Seu Gigi revirar os olhos, enquanto passava as mãos pelo cabelo. Alguém deveria dizer a ele que aquela camisa social dentro da calça não era uma boa combinação. Quando ele respirou fundo, esticando a mão para me entregar o papel que mudaria minha vida nos próximos meses, comecei a me preocupar sobre o buraco em que a vida adulta iria me levar.

Se tirarmos esse momento como indicativo de futuro, eu com toda a certeza estarei bem ferrada.

O reitor renomado, com bigode por aparar e a barriga brigando com os botões da camisa social, me encarava com tédio e esperava que eu dissesse algo, ou no mínimo me humilhasse. Nos segundos em que nossos olhos se cruzaram, cheguei a me perguntar se o diploma era realmente importante, já que a ideia de viralizar no Youtube me parecia promissora.

Já não bastava estar no último ano do curso, surtando com tantas provas e decisões para o meu futuro? Meu sonho, devo frisar, era passar por esses últimos 365 dias em paz, focando em mim e no fato de que a vida adulta estava esmurrando a porta e que já não era possível empurrar as coisas com a barriga.

E eu digo isso com propriedade, porque evitar o inevitável é algo que pratico todos os dias, principalmente quando verifico o meu saldo bancário do programa estudantil que suga a minha alma nesses últimos anos.

— Pare de me encarar como se fosse voar no meu pescoço — ele resmungou, limpando os óculos em uma flanela bege, com detalhes floridos — Como amigo do seu pai, é meu dever fazer alguma coisa, antes que você jogue seu diploma pela janela.

Fechei os olhos e respirei fundo. Eu, Mel Ostranovick — integrante do grupo de arruaceiros acadêmicos — estava ferrada. Depois de tanto brincar com a sorte, percebi que daquela vez, não teria para onde correr.

Quando passei no vestibular me disseram que era o paraíso fazer parte do mundo universitário, que era um espaço no qual poderia lutar por aquilo que meu coração quisesse."É um lugar para você se libertar" — eles diziam — porém, acredito que, com o passar dos anos acabei me espalhando demais.

Talvez eu tenha exagerado mesmo.

Graças a um desses momentos de "posso ser uma ativista", estava aqui sentada nesse banco que me parece ter saído do fundo do baú, enquanto analisava o busto de Paulo Freire e recebia mais um sermão do Seu Gigi.

Ele era um senhor até gente fina, porém, dependia da personalidade que surgisse no dia, especialmente se a TV local aparecesse para entrevistá-lo sobre alguma coisa interessante que a universidade inventava e, por pura sorte, acabava viralizando na Internet. Ele adorava inventar qualquer coisa que fosse digna de ser gravada e tenho certeza, de que, em seu guarda-roupa, havia um espaço especial só de roupas para serem usadas nos dias em que ele era notado pela equipe de marketing da prefeitura.

— Seu Gigi, com todo respeito — gesticulei de forma exagerada — Como eu vou conseguir enfiar aulas de teatro na minha grade de disciplinas mais lacrada do que carne a vácuo?

Qual é? Eu tinha um TCC e mil estágios obrigatórios para fazer. Tinha um projeto do programa de extensão para entregar, um relatório de uma pesquisa de campo que havia feito recentemente e duas visitas ao meu orientador, que honestamente, me fazia chorar só com o olhar.

Observem até onde vai o desespero humano. Já imagino mamãe ligando para o orfanato Alvorada, me oferecendo para lavar fraldas de pano. Talvez eu não seja a próxima protagonista de Malhação, já que ninguém se sensibilizava com o meu desespero estudantil.

— A resposta é não. Faria o favor de se retirar?

Cabisbaixa, saí praticamente me arrastando. Que culpa eu tenho de gostar de participar de tudo que aparece no campus? Passeatas contra a falta de segurança nas dependências da universidade, abaixo-assinados contra o restaurante universitário... tudo tem um dedo meu no meio.

Meu e de Amélia, é claro.

Para que você entenda melhor como cheguei até aqui, preciso ser bem honesta. Sou uma pessoa extremamente empolgada. O que posso fazer, se o destino quis que eu esbarasse em alguém que me faria ver que uma baderna vez ou outra faz bem para a saúde?

A quem não compreende o mundo acadêmico, é importante apresentar o panorama onde nossa história se passa. Tudo aqui se resume a quatro coisas:

1- Os cursos de elite e seus carros de marca. A galera se estapeando para se integrar. Aliás, tentando e jamais conseguindo já que tais seres são praticamente intocáveis.

2-Os cursos de classe média e seus carros com certo charme. As vezes empinam o nariz e não há ser vivo que os faça voltar para o planeta Terra.

3- Os cursos considerados baixos e suas eternas reinvindicações. Nada de carro, no máximo uma moto herdada do tataratataravô.

4 - O curso de Artes Cênicas, que fica enfiado na ala, carinhosamente chamada de "Café com Shakespeare" e sua mania de dividir opiniões: uns dizem que deve ser o máximo fazer parte dessa galera orgânica e sem pudores. Alguns já fazem o sinal da cruz ao passar por aquelas bandas. Outros como eu, não possuem nada contra. Só não fazem questão de muita aproximação.

Graças ao castigo terei que frequentar essa área toda quarta-feira.

Série CCS: Amor e Outros SurtosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora