Capítulo 1 - Você Não Devia Estar Aqui, Menino

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Joana franziu a testa e olhou para Ian, esperando uma explicação. O rosto do menino empalideceu. Ian não tinha grandes problemas em lidar com a zombaria na escola, mas encarar sua mãe não era tarefa das mais fáceis.

— Foi só um arranhão passando pelo portão. Miguel fala demais.

Eu falo demais? Só digo o que vejo ou o que sei. E o que sei é que você é um dos esquisitos do primeiro ano e só arruma encrenca com o...

— Falou o homem maduro da oitava série! Você nem saiu das fraldas. Mal estuda e só joga futebol. Se eu fosse você, teria vergonha.

— Se eu fosse você, faria dieta.

— Chega! – Joana interveio. – Miguel já para o banho e Ian, junte logo esses papéis porque preciso de uma ajuda sua.

O filho mais novo bufou em reprovação, caminhando até o pequeno corredor e entrando em uma das três portas que havia nele.

Com rapidez Ian reuniu as folhas escolares e voltou a ligar o aparelho. Ele mesmo derretia com o bafo quente que se apoderara da casa. Olhou para o relógio na parede: passava das onze da noite. Ficara o dia todo comendo biscoito, bebendo refrigerante e fazendo o trabalho para entregar na escola, enquanto a mãe preparava recheios diversos. Miguel ficara boa parte da tarde e da noite jogando futebol e havia chegado fazia pouco tempo. Ian foi até cozinha:

— Mãe, o que você quer de mim?

— Quero que você prove estes recheios – ela disse, ao mostrar quatro tachos diferentes, cada um com um creme de tonalidade diferente. – seu irmão já deu a opinião dele.

Os olhos de Ian brilharam. Comida era sempre bem-vinda.

— É a primeira vez que faço essa prova. A Emília é exigente e tudo tem que estar perfeito no casamento dela. Seria o fim do mundo se o bolo estivesse fora do esperado.

— Ela não é exigente, mãe. Ela é fresca. E chata.

Joana deu um sorriso leve. Ian continuou:

— Aquela cretina vai conseguir dar o golpe no Ricardo, coitado – disse com uma risada de desdém.

— Para com isso, menino! – Joana chamou a atenção do filho, mas deu uma risadinha.

— Mas é verdade, mãe! Não bastasse a Emília ser feia, ainda é interesseira também.

— Feia ou bonita, vai nos pagar um bom preço pelo bolo de casamento deles.

— Se eu fosse você, colocava laxante nesse recheio.

— Coloco laxante e nunca mais vendemos um bolo sequer. Você é um gênio, meu filho.

Ian afrouxou uma risada longa e a mãe o acompanhou. O menino sentiu uma alegria irradiar pelo corpo. Não lembrava a última vez em que vira a mãe com tal expressão. Joana andava tão ocupada em seu trabalho confeiteiro que ultimamente dormia pouco. Desde pequeno, Ian viu sua mãe fazer bolos dos mais variados tamanhos, formatos e cores. Ele adorava ficar perto dela para comer as sobras de algum recheio ou raspar a tigela. Nos dias atuais a mulher era bem mais requisitada. Seu tempo estava mais escasso a cada dia e o garoto, com seus afazeres de colégio, quase não parava em casa, o que tornava o convívio direto com a mãe mais difícil. Miguel não era um exemplo de carinho e constantemente Ian sentia que apenas ele e Joana realmente moravam naquela casa, quase esquecendo a existência do mais novo. O pai desaparecera misteriosamente quando os dois eram pequenos e desde então Joana sustentava os três, trabalhando sem cessar para mantê-los.

Os Descendentes e a Ferida da Terra (Livro Um)Where stories live. Discover now