A vila dividida

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A cidade crescia como bolo ao fogo, mas Caterina sentia frio de fazer tremer os braços e bater o queixo; de chacoalhar as pernas e tirar dos eixos. Frio que entrava pelos olhos e congelava a garganta cada vez que admiravam os fluxos de mais e mais pessoas infiltrando-se pelas ruas, por entre as casas e árvores rareadas, todas indo para o mesmo lugar.

Ouviam-se berros e cantorias por toda parte, e até quando vinham de mais longe pareciam estar ali, no virar de uma esquina. Policiais certamente reconheciam os ex-parlamentares, mas não fizeram nada que pudesse irritar a multidão que os acompanhava, marchando indiferente por terra ainda fofa da chuva de noites atrás ou por lajotas em avenidas calçadas. Cantavam as vitórias sobre representantes do governo e soldados nas jirs de onde vinham, explicavam como tentaram garantir alguma segurança para as crianças, perguntavam uns aos outros se aquilo seria rápido ou se era apenas o começo.

A noite se aproximava, e enquanto alguns desciam das portas, destacando-se como frutas maduras para se juntar aos pacotes cada vez mais densos de multidão, outros trancavam as menores janelas, fechavam lojas e tiravam as crianças da rua. Recolhiam os minérios do lado de fora e discutiam com os passantes, acusando-os de tudo, sem pormenores. No meio da última grande praça antes do parlamento viram funcionários da cidade arrancando minérios das árvores e de postes baixos. O mesmo se repetia na vizinhança mais próxima, até onde a vista alcançava. O centro de Prima-u-jir caía numa escuridão sem conforto; o céu, nublado, escondia as estrelas. Olhar para o lado, para Caterina, significava ver meros contornos dos rostos perdidos de Verônica e Leonardo. Eles olhavam para frente, mas às vezes estavam atrás de alguém alto demais para ver muito além; tinham a boca semiaberta, que lembravam de usar de vez em quando.

--- Não se esqueçam de Byron. --- Disse Leonardo, olhando para frente como se falasse mais para si. --- Se pegarmos ele, tudo vai ficar mais fácil...

Havia focos de luz, vindos de minérios e tochas improvisadas, incidindo na massa que se aglomerava em volta do quarteirão do Parlamento. O grupo que vinha pelo norte, ao sair dos limites da praça, caiu em uma rua já completamente abarrotada defronte ao prédio. Chegaram em silêncio, mas logo se integraram aos burburinhos e vozerios que formavam, aqui e ali, canções de protesto. "Não queremos, Prima-u-jir, nessa guerra!", entoavam uns com os pulsos fechados para o alto. Uma dupla de homens gorduchos com vestes prateadas rasgava caminho pela multidão, começando sozinhos versos como "Mago bom, é mago morto! Osso quebrado, e dente torto!". Um uníssono mais harmônico, com mais palmas e mais pulmões, começou a cantar "Magos, fujam! Nós vamos pegar vocês!" e Caterina podia ouvir trechos de um discurso que, sem um minério de som, jamais poderia ser ouvido por todos que estavam ali.

Quando Frederico apareceu em uma das varandas superiores, mais gente já estava na praça, agora cheia de pontos de luz, fogo e brilhos metálicos das mais variadas coisas que carregavam nas mãos. As reclamações perderam a qualidade da letra e viraram vaias brutas depois que percebeu-se o rosto do mestre na janela por entre uma abertura nas cortinas.

A velha cabeça barbada observava tudo. Alguns talvez nem soubessem quem ele era, mas provavelmente aprendiam a partir das sugestões que lhe davam quanto ao que fazer com sua vida política.

Leonardo disse às duas que já voltava, não sem antes confirmar que todos ainda lembravam o que fazer se algo desse errado. Verônica comentou que havia visto Frederico fazer algum gesto para alguém mais ao longe.

Caterina não viu nada, mas não precisava daquilo para sentir que havia algo errado. Só pôde articular o sentimento mais tarde, quando pessoas que conhecia de diversas partes da cidade --- estando ali, juntas, o que maravilhosamente não fazia sentido algum --- convidaram-na para assumir lugar no largo e longo tronco que pretendiam usar para arrombar o parlamento.

A Guerra da UniãoWhere stories live. Discover now