Capítulo Um - Filha da ...

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Capítulo Um – Filha da ...

Por Katerine Grinaldi


Cynthia desceu do ônibus bem em frente ao colégio de elite em que estudava e apressou os passos para entrar antes que os portões azuis fossem fechados pelo inspetor, já que estava quinze minutos atrasada. Não é que estivesse muito ansiosa para ter aula, mas suas opções de ficar na rua ou voltar para casa eram bem piores.

Percorreu o corredor praticamente vazio, contando apenas com mais um inspetor parado – garantindo que todos estariam em suas classes – subiu alguns degraus e, assim que escutou o barulho de uma porta fechar, retornou. Não era a primeira vez em que Cynthia fazia isso e nem seria a última, por isso, estudava todos os comportamentos programados dos funcionários.

Entrou no banheiro para portadores de necessidades especiais porque não havia nenhum aluno necessitando dele naquele colégio e, portanto, ficaria sozinha, esquecida em seu cubículo improvisado.

Passou pelo espelho ignorando a garota bonita de cabelos pretos, franja e olhos verdes que pedia urgentemente por uma chance de ser feliz, por uma chance de realmente viver. Jogou a mochila sobre o ladrilho, arrancou o canivete do esconderijo, depois sentou sobre o vaso sanitário, estendeu o braço e calmamente desenhou com a faca uma linha sobre sua pele.

— Ahh... – era uma mistura de dor com alívio.

Cynthia ansiava por esse momento, por sentir a lâmina inundando sua pele de sangue e livrando a sua alma daquele monstro que a comia dia-a-dia. As lágrimas escorriam por seus olhos e pingavam sobre o ferimento, fazendo-o arder um pouco mais, misturando-se ao sangue e escorrendo até pingar sobre o branco perfeito do chão.

Filha de um estupro. Sua mãe, a linda, doce e guerreira Catarina fora abusada aos dezesseis anos, mas jamais desistiu de Cynthia, mesmo que a lei lhe permitisse abortar quando a relação não fora consentida. Cynthia sentia orgulho da mãe, muito, mas sentia-se um estorvo porque mesmo antes de nascer já lhe causava dificuldades.

Filha de injustiças. Aos quinze anos, Cynthia estudava com Grace, uma professora que morava na favela também, para conseguir uma bolsa naquele bendito colégio e acabou sendo notada pelo chefe do tráfico local. Mais uma vez Catarina abdicou de sua própria dignidade, de sua própria felicidade para garantir a de Cynthia. Prometeu ao chefe que faria tudo que ele quisesse para que sua filha fosse intocável na favela. E conseguiu.

Pelo menos uma vez por semana, sua mãe era a boneca do traficante, satisfazendo seus desejos mais escrotos e os de seus amigos também; apanhando quando bem lhes aprouvesse e retornando para Cynthia, o motivo disso tudo.

Pressionou a lâmina mais um pouco, apenas o suficiente para respirar, para livrar-se das lembranças daquela madrugada que passara limpando a própria mãe das maldades dos humanos, apesar de saber que as olheiras em seu rosto a impediriam de se esquecer disso.

Recostou o corpo contra a parede fria de azulejos, fechou os olhos e trincou os dentes tentando suportar a dor física que o corte lhe causava. Era horrível viver com aquelas cicatrizes, ter que escondê-las sempre com mangas compridas – o meio mais fácil de não ter um imprevisto -, ou ter que usar pulseiras ou relógios o tempo inteiro e sentir a dor a cada vez que precisava recorrer às lâminas. Ainda assim, a cada vez que se cortava sentia que abria o corpo para que as feridas da alma escapassem. E mais uma vez, as opções que a vida lhe oferecia não eram das melhores.

Filha das opções, ela pensou até que foi interrompida por um movimento apressado na maçaneta.

Jogou o canivete dentro da mochila e correu para a pia. Será que realmente alguém tinha mexido na maçaneta? Em hipótese alguma o colégio ou sua mãe podiam suspeitar daquilo porque precisava manter a bolsa. Formar-se em um dos melhores colégios lhe garantia uma chance maior numa faculdade pública e isso permitiria que elas saíssem daquele lugar que se tornou imundo por causa dos humanos.

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