Capítulo 1 - Não era um falcão?

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         20 de julho, 2 horas da tarde

— Tenha um bom dia, Sâmia. E procure não trabalhar tanto. Lembre-se de que a mente é complicada e a medicina ainda não possui pleno domínio do cérebro, mas os remédios ajudam e, se pensar positivo, em breve estará curada. — Com um leve sorriso, o médico acrescentou:

— Continue tomando os remédios. Não se esqueça de desviar seus pensamentos de qualquer fantasia que teime em aparecer.

— Tenha um bom dia, Dr. Donhill.

Eram sempre as mesmas palavras do Dr. Donhill e já passaram seis longos anos que o tormento não acabava.

"Sim, Sâmia, acredite que sua mente brinca com você. "

Até quando sua mente continuaria brincando com ela? Já havia perdido as esperanças, por mais que se esforçasse, por mais que tentasse acreditar que aquele tormento teria fim, já fazia muito tempo que não via progresso nenhum e todas as noites a insônia se fazia presente. Para não mencionar os pesadelos que eram constantes nas poucas horas que adormecia. Já não se lembrava mais de quando fora a última vez que dormira uma noite inteira sem acordar com a sensação de que estava sendo estrangulada, e isso acontecia impiedosamente durante os últimos seis anos.

Assim que entrou no carro, deu o endereço ao taxista, retirou da bolsa um pequeno espelho para checar sua aparência e disse:

— Nada daquilo aconteceu! O Dr. Donhill disse que foi apenas minha imaginação.

Chegando em casa, foi direto ao banheiro e, enquanto esperava a banheira encher, disse ao espelho mais uma vez:

— Apenas sua imaginação, entendeu?

Se repetisse isso todos os dias, talvez acabasse se convencendo, afinal, já ouvira inúmeras vezes estudiosos falando que a força do pensamento era a ferramenta mais poderosa do universo. Sendo assim, os pesadelos desapareceriam e, então, poderia voltar a dormir oito horas inteiras como as pessoas normais.

— Se dormisse cinco, já seriam suficientes — disse para si mesma enquanto deixava seu corpo afundar na água quente, procurando não só lavar o corpo, mas a mente de todas as lembranças.

20 de julho, meia noite e vinte e cinco

Estava em uma festa. O lugar era completamente desconhecido. Havia uma multidão sem face que impedia uma visão mais clara; procurava alguém, e a urgência de encontrá-lo vibrava em todos seus poros.

Sâmia virou-se na cama, enterrando a cabeça no travesseiro.

Havia muita luz. A claridade intensa fazia seu olhar vagar sem um propósito, seu coração batia tão rápido quanto as asas de um pássaro rasgando o céu. A espera estava lhe torturando. Seus olhos buscavam aflitos. Pôde sentir o hálito quente sussurrando atrás dela.

21 de julho, uma e vinte e cinco

A noite era escura e ela caminhava o mais rápido que podia pelas ruas desertas; estava desesperada. Já caminhava há mais de uma hora e não conseguia voltar para seu apartamento; era como se todo lugar familiar tivesse simplesmente desaparecido. Ao dobrar mais uma esquina, o lugar se tornou ainda mais sombrio: quase já não podia enxergar, seu coração começou a bater mais rápido e sentiu desfalecer quando uma mão surgiu por entre os becos, agarrando seu braço. Tudo que ela viu foram aqueles olhos brilhantes e, depois, a voz terrivelmente familiar.

— Pensou que escaparia impune?

22 de julho, três e vinte e cinco

Ao chegar ao escritório onde trabalhava, notou que o prédio estava completamente vazio e sentiu um frio de alerta percorrendo seu corpo. Passou rapidamente por todas as salas em busca de um rosto familiar, mas foi em vão: o prédio estava realmente deserto. Dando meia volta, foi em direção à saída, mas agora ela estava bloqueada com uma enorme estátua coberta por um lençol. Sâmia sabia que estava em um sonho, um daqueles que se tem controle parcial da situação. Ela poderia fazer força para acordar, porém, a doce tortura de ver aquele rosto mais uma vez foi mais forte. Respirou fundo e puxou o lençol com uma determinação fora de seu controle habitual e, para seu horror, a estátua era exatamente como se lembrava. Já havia a visto milhões de vezes em livros de mitologia: o outro filho de Saturno, o que herdara o mundo dos mortos, só que dessa vez a face era bem mais cruel, lábios semiabertos em um sorriso de vitória.

Ciclos Eternos - Submundo Livro 1 COMPLETOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora