Locke me observa com seus olhos assimétricos, como se entendesse cada palavra. Caminho até o lavatório, onde uma grande banheira de pedra já está sendo preenchida com água morna e pétalas de rosas vermelhas. Guwndolyn já está lá, com o avental molhado e o sorriso habitual no rosto.
— Demorei? — ela pergunta, segurando um frasco de óleo perfumado.
— De forma alguma. Chegou na hora certa.
Ela sorri mais uma vez e começa a me ajudar com o vestido. É um trabalho delicado — cheio de rendas, botões e laços que só mãos hábeis conseguem desfazer com leveza.
— O castelo está um caos. — Gwendolyn solta uma risadinha. — Simon foi visto correndo pelo salão com as calças do pijama ainda vestidas.
— Típico dele. Aposto que foi culpa da Eulalie. Ela provavelmente perdeu a hora de acordá-lo.
— Não duvido. Aquela menina vive dormindo nas escadarias da biblioteca. Dizem que é mais confortável do que a cama dela.
Caímos na gargalhada, e por um momento, o peso de ser princesa herdeira some. Gwendolyn é a única pessoa que me enxerga sem o título, sem a coroa e sem as exigências que ela carrega. Com ela, posso ser só Marisol.
Entro na banheira e sinto a água quente relaxar cada músculo do meu corpo. O aroma das pétalas misturado ao óleo de lavanda me acalma, e por alguns instantes fecho os olhos.
— Gwen... — chamo, ainda com os olhos fechados.
— Sim?
— Você acha que, se eu não fosse herdeira, minha vida seria melhor?
Ela demora a responder, e quando o faz, sua voz vem baixa, mas firme:
— Eu acho que seria diferente. Nem melhor, nem pior. Apenas... outra vida. Com outros desafios, outras dores, outras alegrias.
Abro os olhos. Ela está ajoelhada ao lado da banheira, me olhando com aquele mesmo olhar de sempre: um misto de carinho e compaixão.
— Às vezes eu queria fugir. Sumir. Encontrar um lugar onde ninguém soubesse meu nome. Onde eu pudesse ser só uma garota ruiva com um gato malcriado.
— Se um dia decidir fugir... — ela começa, e se inclina um pouco — ...me leve com você.
Sorrimos em silêncio.
Após o banho, encaro meu reflexo no espelho, ainda com os cabelos úmidos e os olhos marcados pelo cansaço. A água quente aliviou meu corpo, mas não apagou as marcas que carrego — nem as visíveis, nem as invisíveis.
Começo a preparar a maquiagem. Nunca fui fã de cobrir o rosto inteiro, mas algumas cicatrizes de queimadura exigem uma certa habilidade com pincéis e pós. É curioso como a máscara de tinta que coloco todas as manhãs se tornou parte da minha rotina — quase uma armadura. Consequência de um dom que queima de dentro para fora.
Meu pai costuma dizer que eu seria perfeita se não fossem essas marcas. Como se beleza fosse uma moeda, e ele o banqueiro do reino.
— Está ótimo, vossa alteza.
Gwendolyn volta para o quarto, após terminar de organizar as loções usadas. Seu sorriso habitual está lá, e eu sorrio de volta, mais por ironia do que por alegria.
YOU ARE READING
•𝕷𝖆𝖌𝖗𝖎𝖒𝖆𝖘 𝕼𝖚𝖊 𝕼𝖚𝖊𝖎𝖒𝖆𝖒•
RomanceCalithen, a cidade capital de Soravelle, repleta de beleza e perigos, é palco de segredos antigos e intrigas reais. Lar da poderosa família Hartley, a realeza de sangue azul abençoada pelos Deuses, Calithen agora enfrenta um mistério sombrio: os don...
