Capítulo Único

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Ele me observava de uma casinha de madeira, em Stowe, uma cidade microscópica, com menos de cinco mil habitantes, localizada na região nordeste de um reino mortal que hoje se apresenta pelo nome de Estados Unidos da América.

Ele estava na varanda, feita de madeira envernizada, que se estendia generosamente ao longo da frente da casa, oferecendo um amplo espaço para contemplação e relaxamento. O corrimão, habilmente trabalhado, adicionava um toque de elegância à estrutura, com seus relevos e pequenas raízes esculpidas. Caixas de flores, mesmo no inverno, adicionavam um toque de cor à paisagem predominantemente branca criada pela neve. Ao longo da borda da varanda, pequenas lanternas pendem para fora, com o dever de iluminar as noites escuras com sua luz suave e acolhedora.

Havia quatro cadeiras de balanço enfileiradas e, dentre elas, apenas uma estava ocupada por um jovem bem agasalhado, com uma xícara de chocolate quente, um cobertor sobre o colo, uma caixa de lápis de cor e uma prancheta que suportava o papel para o seu desenho.

De certo, Apolo o abençoou com o dom da arte, pois era habilidoso. Desenhava uma garota no auge da sua juventude. Fios de prata brilhantes compunham o seu cabelo, adornado por um laço verde água, que mantinham presas duas tranças que se encontravam atrás do topo de sua cabeça, enquanto o restante dos cachos caíam como uma cachoeira sobre os seus ombros e a franja lhe cobria parcialmente a testa. Seus olhos azuis eram como água cristalina, capazes de refletir profundidade e serenidade. Seus traços, arredondados e harmoniosos, eram imaculados, reforçando sua juventude. Suas sobrancelhas arqueadas lhe adicionavam uma expressão de curiosidade, enquanto o arco rosado dos seus lábios era doce, gentil e acolhedor. Seu corpo era carinhosamente beijado por um vestido longo e preto de alças finas e seus pés estavam descalços.

Me alegrou perceber que, mesmo inconscientemente, ele ainda se lembrava da minha aparência.

Tinha vontade de descer ao reino mortal para revê-lo, todavia, o preço era demasiado custoso. Para que um deus desça ao mundo mortal e adquira sua forma humana não é difícil, o problema está em como voltar para o reino dos divinos depois que seus assuntos na Terra tiverem sido encerrados. A única forma de voltar, é se o divino em questão contribuir significativamente para o reino mortal e nos tempos modernos isso não é nada fácil. Por isso, muitos deuses optam por apenas projetar uma ilusão da sua imagem quando querem interagir com os mortais. Dessa forma, eu poderia conversar com ele e até mesmo tocá-lo. Ele sentiria o meu toque, todavia, eu seria privada de sentí-lo, afinal, eu seria apenas uma ilusão.

Não poder sentir o seu abraço não era um preço e sim uma tortura.

Me irritei ao recordar-me do cafajeste Zeus, que há muito tempo descobriu uma forma de saciar os seus desejos promíscuos sem perder seu status como divindade. Ele descia ao reino mortal e se deitava com as mulheres humanas. Fazia todo tipo de perversão, os mais diversos fetiches e atos libidinosos, e no final voltava para o reino divino como se nada tivesse acontecido. O motivo? Sua prole. Todos os filhos de Zeus são heróis natos que mudariam o destino do mundo mortal e isso contava como contribuição o bastante para que Zeus retornasse aos divinos. Que ódio.

Dito isso, nem mesmo Zeus arriscaria se tornar mortal hoje em dia. Não que sua prole tenha perdido valor ou algo do tipo, é que se tornar mortal significaria se expor e ser vulnerável ao ódio de outros Deuses. Ódio a Zeus no plano divino é o que não faltava. Quer saber como matar um Deus? Seduza-o a se tornar mortal e o extermine como qualquer outra formiga, assim ele nunca retornará.

Optei pela ilusão.

Saltitei pelas pedrinhas enterradas na neve que formavam o caminho até a varanda de onde ele me observava. Brinquei passando a mão em frente a uma das lanternas e, para minha já esperada infelicidade, não pude sentir o calor de suas chamas. Subi os três degraus de madeira e adentrei a varanda, finalmente conseguindo a atenção do desenhista.

O Sono Eterno de EndimiãoOnde histórias criam vida. Descubra agora