•Pétalas Mortas•

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O gotejar continuava persistente. Lhe roubando a concentração. Franziu o cenho olhando para o chão, o piso branco com veios dourados. Uma careta tomou o seu rosto, "Que brega", pensou.

O silêncio voltou a se manifestar. Se arrastando por entro um gotejar e outro. Querendo brincar com o clímax. Um ruga despertou na testa franzida, seu olhar se fixou em um ponto no chão onde havia uma pequena mancha vermelha. Observou uma gota cair ali fazendo a mancha crescer. Não precisava se agachar e tocar para saber o que era. Levantou o olhar seguindo o seu rastro, seguindo de perto junto ao silêncio que lhe acompanhava como uma sombra, até perceber que o filete de líquido vermelho vinha da fresta da porta entreaberta do armário.

Sem esperar, ou se entorpecer pela surpresa ela abriu a porta. Tapou o nariz imediatamente, o cheiro era algo com o qual jamais conseguiria se acostumar. E talvez as larvas que comiam a carne já em estado de putrufação não fosse lá algo que ela acostumaria a ver.

Fazia bons anos que não via um corpo naquele estada. Um buraco no meio da testa, provavelmente resultado de um tiro, desviou seu olhar procurando pela arma e confirmou suas suspeitas ao vê-la na mão do defunto. O sangue escorria pela fenda que agora encontrava-se em sua testa, havia partes de carne espalhadas pelo armário manchando as poucas peças de roupas. Pequenas larvas brancas já começavam a se acumular prontas para se banquetear com a morte, um ciclo macabro, mas tão vital quando um batimento cardíaco de um corpo com vida. "Temos aqui um caso curioso", a mulher pensou voltando a fechar a porta do armário. Não havia mais o que ver ali, para ela era só mais um fato banal, um corpo tomado pela morte, mas o que lhe despertava curiosidade era o fato do corpo ser de uma senhora, em determinada situação que não esperava encontrar.

Deu de ombros por fim, voltando a encarar o próprio reflexo. Seu olhar ficou vidrado no espelho por um instante, a luz a estática, o gotejar o fedor da putrefação e o silêncio, tudo envolvido permeando sua mente lhe tirando a paz.

Morte.

De repente sua atenção foi tomada pela figura que surgiu no reflexo, a mesma senhora que estava dentro do armário.

A mulher se virou para ela, suspirando aliviada pelo buraco não estar mais ali, "Pelo menos isso, é ultrajante quando tenho que ficar olhando pra essas marcas", reclamou nos pensamentos. Ultimamente andava ranzinza reclamando em sua própria mente. Talvez fosse o tempo de seu emprego chegado ao fim, ansiava pelo seu fim.

A senhora franziu o cenho. As rugas juntando-se, movimentou os lábios e dali nada saiu, até que tentou novamente e dessa vez a voz foi emitida, mesmo que essa fosse fraca:

⎯⎯ O que aconteceu? E quem é você?

⎯⎯ Aconteceu o que acontece com todos os seres humanos, você morreu.

⎯⎯ Como morri? Está brincando comigo?

⎯⎯ Ora! Morreu, bateu as botas, foi de arrasta, faleceu, foi dessa para melhor, morreu de morte morrida... Afinal morreu.

⎯⎯ Isso lá é jeito de falar?! ⎯⎯ a senhora exclamou arqueando as finas sobrancelhas.

A mulher suspirou, parecia procurar por um fio de paciência.

⎯⎯ Com todo respeito, mas são muitos anos no ramo, estou quase na conquista da famigerada aposentadoria, jeito de falar é minha menor preocupação.

Contos que Sussurram.☑.Where stories live. Discover now