Carta décima quarta

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"Que vilão iletrado deve ser esse homem!", pensei comigo mesma. "Que total falta de delicado refinamento deve ter ele, que pode assim chocar nossos sentidos com tão brutal barulho! Deve ser capaz, tenho certeza, de toda e qualquer ação ruim! Não há crime negro demais para tal personagem!" Assim eu raciocinava em meu íntimo, e, sem dúvida, tais eram as reflexões de meus companheiros de viagem.

Por fim, o retorno do dia me permitiu contemplar o canalha sem escrúpulos que tão violentamente perturbara meus sentimentos. Era Sir Edward, o pai de meu falecido marido. A seu lado sentava-se Augusta e, no mesmo assento comigo, encontravam-se sua mãe e Lady Dorothea. Imagine minha surpresa quando me vi assim sentada entre meus velhos conhecidos. Por maior que tivesse sido meu assombro, este foi aumentado ainda mais quando, olhando pela janela, contemplei o marido de Philippa, com Philippa a seu lado, nos assentos externos da diligência, e quando, olhando para trás, contemplei Philander e Gustavus no cesto.

– Ah! Céus – exclamei –, será possível que eu esteja tão inesperadamente cercada por meus parentes e conhecidos mais próximos?

Essas palavras despertaram o resto do grupo, e todos os olhares foram direcionados para o canto em que eu estava sentada.

– Ah!, minha Isabel – continuei, jogando-me, por cima de Lady Dorothea, em seus braços –, receba mais uma vez em seu colo a desafortunada Laura. Ai de mim! Em nossa última separação, no Vale de Usk, eu me rejubilava em estar unida ao melhor dos Edwards; eu tinha então um pai e uma mãe, e jamais conhecera infortúnios. Mas agora estou privada de qualquer pessoa amiga exceto você...

– O quê!? – interrompeu Augusta. – Meu irmão está morto, então? Conte-nos, eu lhe rogo, que fim o levou?

– Sim, fria e insensível ninfa – respondi –, seu irmão, aquele jovem camponês desventurado, não mais existe, e você pode agora vangloriar-se por ser a herdeira da fortuna de Sir Edward.

Embora eu sempre a tivesse desprezado desde o dia em que escutara por acaso sua conversa com meu Edward, cedi com polidez aos rogos dela e de Sir Edward para que os informasse sobre todo aquele melancólico caso. Os dois ficaram chocados no mais alto grau – até o coração empedernido de Sir Edward e o insensível de Augusta ficaram tocados de tristeza com a desditosa história. A pedido de sua mãe, relatei-lhes todos os outros infortúnios que haviam me sucedido desde nossa separação. Falei sobre o aprisionamento de Augustus e a ausência de Edward – sobre nossa chegada à Escócia – sobre o inesperado encontro com nosso avô e nossos primos – sobre nossa visita a Macdonald Hall – sobre o singular serviço que lá prestamos em benefício de Janetta – sobre a ingratidão de seu pai diante desse serviço... sobre o desumano comportamento dele, suas inexplicáveis suspeitas e o bárbaro tratamento dirigido a nós quando nos obrigou a deixar a casa... sobre nossas lamentações pelas perdas de Edward e Augustus, e, afinal, sobre a melancólica morte de minha amada companheira.

A compaixão e a surpresa se estamparam com força no semblante da sua mãe durante a totalidade da minha narrativa, mas lamento dizer que, para o eterno opróbrio de sua sensibilidade, a segunda reação predominou infinitamente. Ou melhor: ainda que minha conduta por certo tivesse sido irrepreensível durante o decorrer todo de meus recentes infortúnios e aventuras, ela teve a pretensão de censurar meu comportamento em várias das situações na quais eu havia sido colocada. Uma vez que, de minha parte, eu sempre tivera plena noção de ter sempre me comportado de uma maneira que lançava honra sobre meus sentimentos e refinamento, mal dei atenção às coisas ditas por ela e solicitei-lhe que satisfizesse minha curiosidade informando-me sobre como havia chegado ali em vez de ferir minha ilibada reputação com injustificáveis repreensões. Tão logo ela atendera meu desejo nesse ponto específico e me fizera um minucioso detalhamento de tudo que lhe sucedera desde nossa separação (cujos pormenores, se você ainda não os conhece, sua mãe poderá lhe transmitir), requeri de Augusta a mesma informação a respeito dela, de Sir Edward e Lady Dorothea.

Augusta me contou que, tendo um gosto considerável pelas belezas da natureza, sua curiosidade por contemplar os deleitáveis cenários em exibição nessa parte do mundo havia sido tão estimulada por Excursão às Terras Altas, de Gilpin, que ela convencera seu pai a empreender uma excursão à Escócia e persuadira Lady Dorothea a acompanhá-los. Contou que haviam chegado a Edimburgo poucos dias antes e de lá tinham feito excursões diárias ao campo circundante na diligência em que então se encontravam, e de uma de tais excursões estavam naquele momento retornando.

Minhas perguntas seguintes foram relacionadas a Philippa e seu marido, sendo que este último, tendo dissipado totalmente o dote dele, como eu soube, recorreu como meio de subsistência ao talento no qual sempre se sobressaíra, a saber, a condução de veículos, e, tendo vendido tudo que lhes pertencia com exceção da carruagem, convertera esta numa diligência e, de modo a sumir da vista de qualquer um de seus antigos conhecidos, partira nela para Edimburgo, de onde ia para Stirling dia sim, dia não. Contou que Philippa, retendo seu afeto pelo ingrato marido, seguira este à Escócia e, de costume, acompanhava-o em suas pequenas excursões para Stirling.

– Foi apenas para jogar um pouquinho de dinheiro nos bolsos – continuou Augusta – que meu pai sempre viajou em sua diligência para ver as belezas do campo desde a nossa chegada à Escócia... pois certamente teria sido bem mais agradável, para nós, visitar as Terras Altas numa carruagem de posta em vez de meramente viajar de Edimburgo a Stirling e de Stirling a Edimburgo dia sim, dia não em um veículo lotado e desconfortável.

Concordei de todo com ela quanto a seus sentimentos sobre o caso, e, no íntimo, culpei Sir Edward por assim sacrificar o prazer de sua filha em benefício de uma velha ridícula cujo desatino de se casar com tão jovem homem deveria ser punido. O comportamento dele, no entanto, revelava plena correspondência com seu caráter em geral; pois o que poderia ser esperado de um homem desprovido do mais ínfimo átomo de sensibilidade, que mal sabia o significado da comiseração e que efetivamente roncava?

Adieu,

Laura

Amor e Amizade (1790)Where stories live. Discover now