Dança comigo, segue o meu ritmo

48 9 91
                                    

Solidão, jogos de luz e música. Era assim que Zuzuanne mais gostava de exercitar os seus passos de dança. No silêncio da madrugada, quando todos se recostavam nas suas camas para descansar, pé ante pé, a jovem descia até ao salão de dança. Tirava da parede um dos discos de vinil que decoravam do ballroom e colocava-o no enorme gira-discos dourado. Pousava a agulha, tocava o primeiro acorde e lá mergulhava ela nas entranhas da sinfonia de inspiração clássica. Movimentos graciosos típicos de primeira bailarina, Zuzuanne balançava harmoniosamente as mãos enquanto se punha em pontas e dava piruetas.

O tempo perdia o seu significado. A música, ainda que o volume não fosse muito alto, para não acordar as suas sisters e os seus brothers que ressonavam tranquilamente, adentrava nos tímpanos de Zuzuanne e transportava-a através de mundos inimagináveis. Cada nota, cada sustenido, cada bemol, cada pausa, um cidadão de um universo apenas acessível através da melodia. No seu corpo, a rapariga de origem africana incorporava histórias nunca contadas, personagens esquecidas nas pautas iniciadas por clave de sol. Era como se a música e a dança fossem um portal para uma dimensão onde cada um se pudesse expressar e ser quem era. Pena que na realidade não era assim. O ballet estava mais do que corrompido pelas academias preconceituosas que escolhiam a dedo as suas bailarinas, não pelo talento, mas pela conceção social de "pessoa ideal". Perdera completamente a sua essência.

- Ainda a treinar, Zuzu?

A jovem cessou os seus movimentos e ficou estática. Era como se a música tivesse dado uma guinada ou o disco estivesse riscado. Se há crime maior para uma bailarina, é interromper-lhe um ensaio. Que belo susto apanhara!

- Mother! - Exclamou a rapariga, ao reconhecer a sua mentora. - Não sabia que estavas acordada!

Era uma mulher alta, de costas largas, sem seios e ainda com alguns traços masculinizados. O cabelo ondulado bem arranjado resplandecia com minúsculos e quase impercetíveis reflexos cintilantes da laca. A echarpé adornada com pequenos brilhantes cintilava ao ser incidida pelas luzes da pista de dança. O vestido comprido, cheio de folhos e de rendas, e os sapatos de salto alto elegantes exibiam o glamour feminino típico da época. Os brincos de pérola completavam o rosto besuntado com base e pó de arroz, aos quais se juntava a sombra violeta e o batom vermelho.

- Já é tarde. É melhor ires te deitar. Amanhã tens uma grande apresentação.

- Eu sei, Mother, mas é que...

- Eu compreendo, Zuzu. - Cortou a mulher de meia idade, com uma calma e uma paciência sem igual. - Todos os Paissondancers se perdem de vez em quando no tempo transportados pela música e pela dança.

Como era compreensiva e amável aquela mulher! Tudo o que de gentileza havia em si vinha no mesmo grau de preconceito e ofensa que a sociedade dirigia à sua pessoa, pura e simplesmente por não se identificar com o sexo que lhe fora atribuído à nascença e ser uma mulher transgénero. Muita força tinha ela para enfrentar todo o ódio que lhe era infligido e, mesmo assim, tornar-se numa das criaturas mais carinhosas que Zuzuanne conhecia à face da Terra. O seu ser parecia uma máquina de transformação de maldade em amabilidade. Rejeitada pelo pensamento social retrógrado, reunira o pouco que tinha e fundara a House Passiondancer. Procurara pelas ruas e pelos becos abandonados os dançarinos mais talentosos e incompreendidos. Aceitara-os e acolhera-os como uma boa mãe ama incondicionalmente os seus filhos. Ensinara-os e treinara-os não só a nível da dança, mas também do ponto de vista pessoal. Todas as suas children eram pessoas doces, carismáticas e guerreiras, que não guardavam o menor rancor pelo mal que a sociedade lhes provocava. Não aceitavam a diferença? O problema era deles. Haviam de estar destinados ao desprezo e à ignorância até que se apercebessem do talento que perdiam. A esperança de novos tempos vindouros fortalecia os membros daquela House.

Dança comigo, segue o meu ritmoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora