Singular

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Está de volta ao lugar onde prometi nunca mais voltar já era um choque para mim. E a primeira pessoa que vejo é também alguém que prometi nunca mais olhar encontrá-la.

— El, como está? Já faz tanto tempo... — Evans diz, mexendo no seu chapéu ridículo de cowboy.

— Você continua o mesmo.

— E você mudou.

— Alguém precisa mudar, Evans. — Desdenhei.

Ele bufa e vira as costas para mim. Olho de volta e o vejo balançando a cabeça, como se discordasse de algo do que eu disse.

— Entre, El. — Tia Belly me chama, fazendo sinal para dar a minha mala a ela, abrindo a porta para mim. — Não ligue para o Evans.

— O que ele faz aqui?

— Às vezes, ele traz alimentos para os animais, todas as tardes. Hoje veio mais cedo, porque não acreditava que você vinha.

— Por que ele não acreditava?

— Você jurou que nunca mais viria, El.

— Já vi que vão ficar jogando isso na minha cara.

— Não é o que estou fazendo. Respondi a sua pergunta, apenas isso.

Resolvi não argumentar, até porque nem podia. Eu tinha jurado, e todos ainda se lembravam disso. Eu tinha um pouco de esperança de que tivessem esquecido.

A casa da tia Belly ainda era a mesma. Os mesmos retratos continuavam nas mesmas paredes, e novos surgiram em outras. Algumas paredes ganharam cores novas, mais vivas. E conhecendo como eu conhecia tia Belly, poderia jurar que a ideia das cores não foi sua sugestão, sendo tão reservada como ela era.

— Vou levar sua mala para o quarto, que era de Grace e Gina. Depois que se casaram, não dormiram mais nele.

— Como elas estão?

— Estão ótimas. Casadas e com filhos.

— Elas moram aqui, na cidade?

— Não. Moram em outra cidade próxima, mas aparecem todos os finais de semana. Ainda frequentam as missas daqui.

— Na mesma igrejinha?

— Na mesma igrejinha. Depois a levarei lá.

— Está bem.

Enquanto eu descansava na pequena sala com a tv ligada, com comerciais da região, que para mim, pareciam ser de outro país, minha tia assava um bolo e passava um café. Disse que alguns homens e meu tio apareceriam para tomar o café da tarde.

— O tio ainda trabalha no campo?

— É. Ele está aposentado, mas não consegue parar de trabalhar. É como papai dizia, ficar parado adoece.

Meu avô dizia isso mesmo, e trabalhou a vida toda, mesmo com a idade bem avançada. Ele acreditava que se parasse de trabalhar, ficaria doente, porque o corpo não se acostumaria. E acabou adoecendo do mesmo jeito, com demência.

— Ele sempre se preocupou com você, El. — Ela notou que fiquei pensativa.

— O vovô?

— Sim.

— Ele não se lembrava mais de mim, tia.

— Ele não se lembrava de ninguém, nem da esposa. Mas, ele sabia que você existia, que todos nós existíamos. Só não se lembrava dos nomes, histórias...

— Pode ser.

— Mamãe também se preocupava muito com você. Ela rezava dia e noite, e sempre pedia por notícias suas.

— Sinto falta dela...

— Eu sei, querida.

Minha vó me criou, desde a separação dos meus pais, quando eu ainda era criança. Sempre tivemos uma ligação especial. Ligação essa que até minha mãe teve ciúmes.

Tio Lam surge com seu rosto envelhecido e cansado, mas sorri assim que me vê.

— Querida, El! — Disse em tom eufórico. — Pena que estou todo suado e não dá para te abraçar.

— Eu não me importo, tio.

Eu o abracei, enquanto ele parecia desacreditado. Me abraçou de volta quando se deu conta de que eu realmente não me importava.

— Você não mudou. — Diz ele, em voz baixa.

— Por que diz isso?

— Porque você é a mesma garotinha, El. Você apenas amadureceu, mas continua sendo a mesma.

Acho que entendi onde ele quis chegar, mas eu não disse nada.

— Você já viu o povo todo?

— Ainda não, tio. Cheguei faz pouco tempo.

Minha tia interveio, segurando o bolo recém assado, que exalava o cheiro maravilhoso. Isso me trouxe boas lembranças da minha infância.

— Seus bolos continuam maravilhosos, tia.

— Venha, se sente e coma um pouco. — Ela disse, me puxando para a mesa, enquanto meu tio limpava seu rosto e as mãos na pia externa da casa.

— Aposto que está delicioso. — Desabafei.

— Você quer todo mundo depois? Estão todos reunidos, na casa de mamãe.

— Tia, eu não estou pronta para ir lá ainda. Eu não... sei se consigo.

— Ver a sua família?

— Ir na casa de vovó, tia. Eu não... eu não consigo.

— Querida, não tenha medo. Ela iria gostar muito que você voltasse lá novamente. Sempre foi o desejo dela.

Suspiro fundo, sentindo um aperto no peito. Já nem quero mais comer bolo. Tudo o que quero é me encolher em algum lugar e ficar lá, em posição fetal, até o dia de pegar o voo de volta.

— Desculpe, mas não vai dar. Eu realmente não consigo.

— Tudo bem, querida. Eu vou pedir que venham para cá. Está bom assim? Prefere desse jeito?

— Seria melhor.

— Está bem.

— Obrigada, tia.

Ela sorri, mas vejo a tristeza em seu olhar.

Meus tios e primos surgiram alguns minutos depois, com suas vozes misturadas e alegres, inconfundíveis, como toda família grande. Chamavam meu novo praticamente num único coro e me abraçaram, analisando tudo, e fazendo as mais diversas perguntas. Percebi que sentia falta disso, dessa agitação sem fim, da euforia genuína. O que antes me incomodava, agora me encantava e me causava nostalgia.

— Seu pai a encontrará mais tarde. Ele ainda não chegou aqui. — Revela tia Totty, por trás de mim.

— Eu já esperava...

— Ei, ele queria estar aqui desde ontem, mas não conseguiu. Sabe como ele trabalha muito...

— Sei. — Respondi em tom de sarcasmo, porque sabia o motivo do meu pai trabalhar tanto.

— El, você ainda guarda mágoa dele, não é? Você ainda ressente seu pai?

— Não quero falar disso. Vamos curtir isso aqui, eu senti saudades de vocês.

— Nós também sentimos, minha linda.

Depois do bolo e do café passado, fomos para outra área da casa, mais espaçosa e com redes. Tudo tão característico, como se fosse o único lugar do mundo que tivesse tudo isso, de tão singular que é. 

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⏰ Last updated: Mar 11 ⏰

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