PRÓLOGO

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Querido diário, meu nome é Odete

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Querido diário, meu nome é Odete. Vim te contar sobre o meu luto.

Minha vida mudou. O peso da ausência de mamãe ecoava por todos os cantos da casa, como um fantasma silencioso que me lembrava constantemente da sua partida. Meu pai, outrora a figura firme e inabalável, tornou-se um reflexo da dor e culpa. A casa, antes repleta de calor humano, agora parecia vazia e silenciosa. Os espaços que costumavam ser preenchidos com o som da música de mamãe ou as conversas carinhosas na mesa de jantar estavam agora envolvidos em um silêncio perturbador. Cada canto, cada objeto parecia carregar memórias dolorosas, como se as paredes da casa absorvessem minha tristeza e a refletissem de volta para mim.

O clima também mudou. Não apenas o clima lá fora, mas o clima dentro do meu coração. O sol já não brilhava com a mesma intensidade, e as nuvens pareciam pairar perpetuamente sobre mim, obscurecendo qualquer raio de esperança que tentasse romper a escuridão. Cada dia se arrastava como uma eternidade, e ainda assim, parecia que eu estava presa em um loop interminável de dor e saudade desde que ela se foi.

Whiskey. Vodka. Champanhe. Cervejas. Essas eram as marcas deixadas pelo luto na casa desde que mamãe partiu. As garrafas vazias se amontoavam pelo carpete como testemunhas silenciosas da dor que assolava meu pai. Ele não tentava esconder sua angústia; pelo contrário, parecia querer mostrá-la ao mundo, como se a visibilidade da sua dor pudesse de alguma forma aliviar o fardo que carregava.

Enquanto observava aquelas garrafas espalhadas pelo chão, uma mistura de tristeza e raiva crescia dentro de mim. Como alguém poderia dizer que eu era "muito nova" para entender a profundidade da dor que assombrava minha casa? Aquelas palavras ecoavam na minha mente como um insulto, como se minha idade fosse um impedimento para compreender a magnitude da perda que havia enfrentado.

A cada garrafa vazia que eu encontrava, meu coração acelerava e meu sangue fervia. Era como se a presença delas na casa fosse um lembrete constante da minha impotência diante da situação. Eu queria gritar, queria chorar todos os dias.

Eu sentia que precisava chorar todos os dias da minha vida.

Lembro-me exatamente de como me senti quando recebi a notícia de que mamãe havia se jogado de um penhasco. De primeira eu não senti nada. Merda nenhuma. O baque foi tão grande que eu poderia compará-lo à sensação de um tiro na cabeça, tão forte e rápido que você nem ao menos percebe que foi atingido, mas é claro que havia uma diferença enorme entre as duas coisas; a diferença é que depois eu não morri como num tiro, eu simplesmente senti meu peito doer como se meu coração estivesse sendo esmagado.

Insistem em dizer que nosso coração é apenas um órgão e que ele não deve ser conectado às nossas emoções, mas o que devemos fazer quando descobrimos que a primeira coisa a doer ao recebemos uma sentença emocional é o coração? Seria o coração um pequeno saco de pancadas do cérebro?

Não importava o quanto me dissessem que eu era "muito nova" para entender. Eu sentia aquela dor profundamente, de maneira visceral, como se cada fibra do meu ser estivesse sendo rasgada pela ausência da minha mãe na minha vida.

No primeiro dia eu fiquei anestesiada. Não entendia o que estava acontecendo. Travei, não derramava uma lágrima sequer, agia como se estivesse dormindo. Parecia que tudo dentro de mim estava congelado.

No segundo dia sentia minha garganta se fechar constantemente em incertezas e angústias, tentando convencer a mim mesma de que estava presa em um pesadelo qualquer.

Do terceiro dia em diante eu caí no choro, trancada em meu quarto, me estapeando e quebrando coisas desesperadamente. Acordar foi a pior parte. Não. Não! Eu não queria! Queria mamãe de volta, queria ao menos ter tido coragem de ver seu corpo pela última vez, mesmo que sem vida, mas nem disso fui capaz. Eu era apenas uma pequena inútil depressiva buscando formas de tentar voltar para o colo de mamãe.

"Você deveria tê-la impedido de ir até lá, tê-la impedido de te defender!".

Eu deveria me questionar sobre estar me culpando quando no fundo sabia que o verdadeiro culpado estava no quarto ao lado? Eu sabia de todos os motivos. Sabia que mamãe tinha todos os motivos do mundo para querer se ver livre de suas situações. Papai a encurralava como uma prisioneira.

"Não saia de casa!"

"Você me deve explicações!"

"Eu não devia ter me casado com você!"

"Você não serve para nada!"

"Não deve conversar com ninguém quando colocar os pés para fora de casa!"


Minha mãe, que vivia presa, havia sido morta antes mesmo de se suicidar.

Desde o dia em que soube que não a teria mais comigo, comecei a reunir forças antes de poder encarar papai novamente. Vesti uma carranca horrível antes de falar com o homem depois de tempos sem nem ao menos nos olharmos, me fiz de durona quando sabia que por dentro estava com medo e ansiosa para fugir. Ainda que sentisse minhas pernas bambearem, eu queria um abraço, palavras de consolação, um sorriso triste ou só um suspiro... um pedido de desculpas, talvez?

"— Sobe já para o seu quarto!"

Foi só isso o que ele disse antes de voltar a beber olhando para a lareira acesa.

Naquele momento eu entendi que a partir do instante em que perdi a pessoa que eu mais amava, então só restou eu por mim mesma. Era só eu em meio ao meu próprio caos e tortura. Só eu poderia me consolar e me ajudar. Só eu conseguiria reprimir meus ataques de choro e me acalmar. Eu tinha que ser responsável por mim mesma antes que acabasse como a mamãe.

Mas o maior problema era que na época em que descobri isso eu só tinha dez anos de idade, uma ferida enorme para poder cicatrizar e uma dura lembrança em minha mente: a de meu pai jogando mamãe de uma altura inimaginável, sem nem ao menos hesitar.

Um peso enorme vive comigo durante muitos anos. Eu teria que, com toda certeza do mundo, um dia provar que tudo o que eu vi foi real e mostrar que mamãe nunca se mataria e me deixaria sozinha aqui.

Fim da ÉpocaWhere stories live. Discover now