Café Com Vida

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Desde os primórdios da humanidade, a Morte é musa das mais variadas poesias, trovas e pinturas. Temida, ressentida e por vezes cultuada. Mas seja enquanto Ceifador, Caveira ou o Vazio, sempre possuiu um imponente e ameaçador semblante. Sua inevitabilidade trazia tristeza. Sua proximidade, desespero. Sua passagem, o luto.

Dificilmente uma pessoa feliz enxergaria na Morte tanta beleza quando enxergou Sebastião, um homem na pacata cidade de Montes Claros. Um homem comum, frustrado e realizado em medidas proporcionais. Entretanto, não havia um único morador da região que não o conhecesse, ao menos por nome, e todos eles atestavam por sua alegria contagiante.

Com uma introdução dessas, Tião, como preferia ser chamado, pode até parecer ser mais elegante do que era. De vida simples, voltava todos os dias para sua casa silenciosa, onde nem esposa e nem filhos estavam para lhe receber. 

Eu poderia lhe contar tudo sobre Seu Tião, desde o momento de seu nascimento prematuro até seu último suspiro. Mas, para o próprio, sempre bastou que se soubesse de sua índole. Sebastião era um bom homem, gentil e íntegro, ainda que um pouco intransigente. Bebia muito, aliás. Dizia que queimava as mazelas da alma.

Foi após uma bebedeira noturna, em seus aposentos modestos, que deparou-se com a visita tardia da Morte. Levaram-lhe alguns bons momentos até que finalmente entendesse quem lhe atazanava já tão tarde da noite. Mas cordialmente, abriu a porta e recebeu sua visitante.

— Você sabe quem eu sou? — inquiriu-lhe a Entidade.

— Claro que sei! — respondeu Sebastião prontamente — Não lhe esperava tão cedo, admito, mas casa de mineiro sempre tem um cafézinho!

A Morte se espantou, tentando decifrar a mente calma e receptiva do homem, que já preparava o café. Tião se orgulhava do que dizia ser seu dom de adivinhar o tipo de bebida que a visita preferiria.

Confiantemente, Tião repousou duas xícaras sobre a mesa, uma contendo café preto para a Morte e a sua transbordando de café com leite.

— Não vai sentar, Dona Morte? — Sebastião interrompeu seus pensamentos — Aqui é apertado, mas sempre cabe mais um. Igual coração de mãe.

— Não há tempo para banalidades. Eu vim levar você, Mário Sebastião.— É Tião para os chegados, e a Senhora é visita. Aliás, você só chama de banalidade porque ainda não provou meu café. Senta aí que seu dia foi cheio, vinte minutinhos não matam ninguém.

A poderosa figura esboçou algo como um sorriso. Poucos lhe recebiam tão calorosamente, divertidos até em seus momentos finais. "Vinte minutos", pensou, concluindo que valia a pena.

Ali, sentados à velha mesinha com uma xícara de café posto a frente de cada um, trocaram olhares desconfortáveis. A Morte não entendia as intenções de Sebastião. Muitos já haviam tentado barganhar, implorar ou exigir mais tempo, mas não havia nada disso no olhar do homem.

Naqueles aposentos, via muitos indícios de uma vida cheia. Desde retratos de família até brinquedos, documentos e um acervo de velharias como lentes de óculos, bilhetes de viagem e pedras brilhantes. Nada disso, que agora deixava para trás, parecia pesar o humor de Tião.

— O que você faz, Sebastião? — perguntou-lhe a Morte, quebrando o gelo.

— Sou médico, Dona — respondeu Sebastião, com um sorriso terno — Por isso, já havia visto a senhora de perto outras vezes.

Ainda que não fosse versada nos costumes dos homens, a Morte esperaria aposentos diferentes de um curandeiro. Maiores ou mais mobiliados, talvez, mas certamente mais limpos.

— Conheci muitos médicos avarentos, e você não parece ser um deles.

— Nunca tive a oportunidade de ser avarento, não. Nunca administrei bem as finanças.

MEMENTO VIVEREWhere stories live. Discover now