◇ Tormentas do Passado, sou uma fã de Wick ◇

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    Diana nunca foi uma pessoa de arranjar confusão. A confusão era quem sempre a achava. Motivo pelo qual um pergunta persistia em seus devaneios:
   Seria ela para sempre destinada ao Caos?
   Afinal, era o que todos diziam sobre demônios. Monstros hostis e cruéis que, supostamente, serviam a Lúcifer. Uma imagem sempre estaria atrelada à outra. Desse modo, as pessoas tinham uma aversão a qualquer coisa relacionada a essas criaturas. Diziam que demônios tinham presas para arrancar sua carne dos ossos, os olhos poderiam queimar sua alma e as garras derramariam seu sangue em sacrifício ao seu Senhor. Eram sádicos, sanguinários e perversos por natureza.
    Não era como Diana enxergava sua mãe.
    Ela era alta e de aparência intimidadora, esse fato não poderia negar. A pele era pigmentada por um vermelho bordô, o que tornava seus músculos ainda mais bem aparentados. Seu par de olhos, junto àquele que ocupava o centro de seu testa, eram do mesmo tom de vermelho que os de Diana, contrastando com a esclera negra. Tantas características arrepiantes para que, no fim, fossem dois metros e mais um pouco de puro carinho.
    Kyane nunca seria capaz de tamanha maldade.
    Talvez em um passado distante. Não porque gostava, mas porque precisava. Desde pequena, Diana foi ensinada pela mãe sobre a hipocrisia das pessoas. Abominavam os demônios, mas os utilizavam como fonte para alcançar seus objetivos. Invocavam-lhes, extorquiam seus poderes ou os forçavam a aceitar um contrato e, então, assim sem menos, eram descartados.
    Kyane não queria isso para a filha e, por isso, havia presenteado Diana com uma espada de sua cultura. Uma ferramenta que servia para protegê-la e defendê-la de pessoas que gostariam de se aproveitar dela.
Diana apenas precisava aprender a usá-la apropriadamente.
    Um golpe passou rente ao seu rosto. Ela quase sentiu o cheiro da madeira que Roni usava como espada. Se fosse uma espada de verdade e Diana se machucasse, Valerie teria a cabeça da mulher em uma bandeja. Em compensação, Diana poderia realmente cortar a professora ao meio, se não lutasse com a espada ainda envolta pela bainha.
    — Sua defesa melhorou — elogiou Roni enquanto a garota bloqueava um golpe.
      — Meu ataque também — Diana sorriu.
   Ela empurrou a mulher para trás usando sua vantagem física e preparou um golpe horizontal. Ao invés de bloquear, Roni se agachou e evitou o ataque. Aproveitou a abertura de Diana para lhe dar uma rasteira.
    — Um dia — gemeu a garota, esticada no gramado. — vai me contar onde aprendeu a lutar assim.
    — Apenas quando você conseguir me acertar — Roni piscou e ofereceu uma mão.
     — Não, acho que vou ficar por aqui mesmo.
Apesar de resistente, Diana tinha limites. Sua respiração já estava ofegante e o suor escorria de sua testa.
     — Tudo bem — concordou Roni, entregando-lhe uma garrafa d'água. — Vamos fazer uma pausa.
    Os gritos vitoriosos de Casper preenchiam a extensão do campo com a ferocidade de um guerreiro viking. Em segundo plano, era possível escutar Agatha tendo pequenos surtos de raiva por não conseguir invocar um exército de espíritos. Diana sorriu enquanto sentia os raios de sol acolhedores tocarem seu rosto. Conviver com o Clã Amaldiçoado com certeza era lidar com a desordem todos os dias; ainda bem que demônios parecem se dar bem com o caos.
   Ela sentiu uma cutucada na perna. Apoiando-se sobre os cotovelos, encontrou o olhar de Roni.
    — Será que podemos conversar?
   Diana se sentou para encará-la nos olhos. Eram poucas as vezes que sua professora tinha aquele olhar sério, o tipo que os adultos usavam. Na maior parte do tempo, ela parecia um dos adolescentes.
    — Eu entendo que não queira causar problemas, Didi — arfou Roni. Ela mantinha os olhos nas mãos entrelaçadas sobre os joelhos. — Mas, eu preciso que seja sincera comigo. Acha justo seus companheiros terem que suportar a Megara e seus capangas todos os dias?
    Roni virou o rosto em sua direção e Diana quis se encolher sob o olhar da professora.
   — Roni, eu faria qualquer coisa por eles — murmurou, acanhada. — Enfrentaria o inferno que fosse para protegê-los do perigo — seus dedos traçaram as linhas de suas cicatrizes, um costume de uma vida. — A verdade é que eu queria muito contar sobre tudo para a minha mãe.
    — E por que simplesmente não diz? — esbravejou Roni.
    — Roni, agora é a minha vez de fazer uma pergunta sincera.
    A mulher balançou a cabeça para que prosseguisse.
     — Você já sofreu perseguições na época da escola?
   — Infelizmente — assentiu em vergonha. — Sim, eu sofri...
     — Então deveria saber que as coisas só iriam piorar!
   — Mas crianças deveriam poder confiar nos adultos! — exasperada, Roni socou a grama.
    Diana massageou a testa para impedir a dor de cabeça que a estava ameaçando.
    — Não é uma questão de confiança — explicou ela, pesarosa. — Minha mãe não vê esse lado deles, porque eles são ótimos atores. Eu conto a verdade e ela vai lhes dar a maior repreensão da vida deles. Então, como vingança, Megara será mais cruel do que nunca.
     — A coordenação pode ajudar — foi o argumento de Roni. — A Aurélia é sempre justa.
    — Roni... sejamos realistas, por favor. Os pais da Megara são influentes. Ela, no máximo, pegará uma suspensão e voltará em uma semana.
    O tom de voz de Roni tornou-se reprimido e inseguro.
    — Eu só... queria poder resolver essa situação de alguma forma para vocês.
    — Mas ainda pode — Diana deu de ombros.
    — Como, Diana? — revirou os olhos. — Você acabou de jogar um seminário de impotência na minha cara!
    Diana riu. Essa era a professora que conhecia.
    — Ensinando — constatou ela. — A única maneira de nos livrarmos da Megara é contra-atacando e, para isso, precisamos ser fortes. Para sermos fortes, nós precisamos que você nos ensine, como sempre fez.
    A situação não era a ideal, ambas tinham plena consciência disso. Em um mundo mais justo, elas apenas recorreriam à coordenação e nunca mais teriam que ver a cara debochada de Megara de novo. Entretanto, Roni tinha que aceitar a realidade em que viviam. Diana estava certa e, surpreendentemente, estava sendo muito madura perante a tudo. Roni pensou que deveria aprender uma coisa ou outra com a aluna.
   — Você foi a única que não desistiu de nós — murmurou Diana.
    Roni sentiu vontade de chorar, quase acabando com sua imagem de durona. Se bem que, depois dos últimos meses juntos, ela não tinha mais que manter essa pose na frente das crianças.
     — Chega, não me faça sentir minhas emoções hoje — brincou. — De volta ao treino. Vamos. Sem corpo mole!
    Fazendo drama, Diana choramingou.
     — Eu já tô muito cansada, Roni. Será que eu não posso tirar o resto da tarde de folga para ler um livro, ou sei lá?
    — Hum — Roni fingiu estar pensativa. — Posso considerar a oferta, mas apenas se — ela levantou o dedo em tom desafiador. — você conseguir montar na vassoura direito.
    O desafio era uma das melhores maneiras de motivar Diana. Ela sentia o corpo queimar em determinação. A mente focada em provar que a pessoa a desafiando estava errada.
    A vassoura apareceu em suas mãos, saindo diretamente da Pedra de Guardar, e Diana passou uma perna por cima do cabo. Era o estilo tradicional de usá-la, como uma bicicleta.
     — Vamos lá... — ela respirou fundo.
    Diana firmou o pé na grama, preparada para um impulso. Estava confiante, mas assim que deixou o chão, a vassoura deu uma ré brusca e a garota foi parar bosque adentro.
    Roni apitou.
     — Fora!
   
                            ⛤ ⛤ ⛤
   
    O local de encontro após as aulas era um revezamento entre os dormitórios do trio. Um momento para relaxar, aberto a conversas mais francas sobre a escola e outros assuntos interessantes a um adolescente. O quarto de Casper tinha cheiro de chuva e terra molhada. Diana sentia que entrava em um campo aberto toda vez que botava os pés dentro do dormitório do rapaz. Ela adquiriu o costume, desde muito nova, de associar a chuva à sua mãe. Então, o quarto do amigo era um lugar que remetia a um espaço seguro.
   Eles sentavam em um silêncio confortável. Roni muitas vezes pesava a mão nos treinos, deixando uma porção de mentes e músculos doloridos.
    Diana estava de pernas cruzadas no chão, tirando os últimos espinhos emaranhados em seu cabelo e jogando em um pote. Agatha, ao seu lado, resmungava baixinho na língua dos elfos. Toda vez que atirava uma carta no centro do quarto, um fantasma laranja e emburrado aparecia.
    — Ainda sem sucesso? — questionou Diana, ela tirou outro espinho e arrancou alguns fios no processo.
    Agatha tentou outra carta. Dessa vez, um espírito com a cabeça do tamanho de uma bola de tênis apareceu. Ela choramingou e jogou a cabeça para trás, desistente.
  — Veja pelo lado bom, — Diana fez uma careta enquanto desfazia sua trança. — pelo menos você não caiu sete vezes de uma vassoura, em pleno ar, até dar de cara com um arbusto cheio de espinhos selvagens.
    Casper riu amargamente, estirado em cima de sua cama.
    — Tudo bem, mas foi você quem derrubou uma árvore que abrigava uma família de esquilos?
    Ele apontou para a estante mais alta do quarto, onde quatro roedores muito irritados o encaravam com pequenos olhos mortais. Diana nunca tinha visto um esquilo parecer tão intimidador.
    — Tá — suspirou Diana. — Você ganhou essa rodada. Os espinhos não são permanentes.
    Uma necessidade imensa de rir das circunstâncias tomou conta do corpo cansado de Diana. Esse tipo de situação, com certeza, só poderia acontecer na Torre Negra, a torre deles. Duvidava muito que Megara passasse pelo mesmo. Azar o dela. Seu clã não chegava nem perto de ser o mais forte, muito menos o mais eficiente, mas Diana não os trocaria por nada.
    Casper ergueu a cabeça do colchão e Diana esperou um comentário inteligente ou mais uma de suas piadas infantis. Mas ele franziu a testa.
    — Tem alguém batendo na porta principal — alertou.
  Os três desceram as escadas com urgência, quase tropeçando entre eles. Não era muito comum receberem visitas, ainda mais àquela hora da noite. Agatha até deixou suas cartas para trás e Diana tinha apenas uma trança nos cabelos, o outro lado da franja solto e bagunçado. A batida rítmica não só instigou os adolescentes, como despertou o protetor da torre de seu sono de pedra. Assim que Diana abriu a porta, Gus saltou e agarrou o rosto do visitante. Ele dava tapas e arranhões, querendo a todo custo parecer um guardião competente e assustador.
    A vítima do rato orelhudo caiu no chão tentando arrancá-lo como uma sanguessuga. Diana segurou Gus como seguraria um gato raivoso e o jogou para dentro da torre.
    — Gus, fica! — ordenou.
    — Essa coisa não tem raiva, não é?
    O garoto, que agora se encontrava sentado no piso frio, massageava o rosto vermelho para aliviar a dor. Ao reconhecer o irmão, Diana imediatamente o colocou de pé.
    — Nico, — arfou passando a mão nos arranhões dele. — você está bem?
    — Comparado aos treinos do Bronko, isso não é nada — ele riu e fez uma pose de valentão. — Eu sou mais forte do que imagina, Didi.
    — Ha! — riu Caz, de algum lugar dentro da torre. — Acho que alguém acabou se perdendo nas próprias ilusões!
    O barulho de um tapa foi seguido de uma Agatha censurando Casper:
    — Cala a boca! Deixa o Nico em paz.
    — O quê? Eu falei alguma coisa errada?!
    — Às vezes, você é um poeta, Caz. Quando fica calado, especificamente.
    Nico mexeu os ombros, desconfortável. Ele era alguns centímetros menor do que Diana, e quando se encolhia, parecia ainda menor.
    Nicolai e Diana eram gêmeos idênticos. Ambos tinham o mesmo cabelo selvagem, mas o dele era curto e um pouco mais ajeitado. Na infância, eram quase indistinguíveis, confundindo suas mães com bastante frequência. Com o passar do tempo, a aparência de Nico sofreu mudanças diferentes de Diana, mas seu interior permaneceu o mesmo. Um garoto sensível e gentil. O nome que escolheu foi em homenagem a um ancestral da família Watherhouse, o qual ele considerava um verdadeiro herói. Diana achava que combinava muito mais.
    — Ignora — aconselhou a irmã. — Mas será que eu posso saber o que o senhor está fazendo aqui à essa hora?
    — Diana, são quase sete horas — ele apontou para seu relógio.
    Diana agarrou o pulso do irmão e verificou o horário. Caramba, ela tinha esquecido completamente do compromisso semanal deles. Ela o puxou para dentro depressa e gritou para os amigos ajudarem a arrumar os preparativos. Casper correu para a cozinha em busca de aperitivos. Agatha ficou encarregada de ligar a bola de cristal, uma tela holográfica sendo projetada logo acima.
    Enquanto isso, Diana se ocupou em fazer uma mistura de óleo de Lótus e seiva de Eucalipto-Ardente, dois ótimos auxiliares na cicatrização. Ela passou com cuidado sobre os machucados do irmão. A pele irritada foi agraciada pelos seus dedos delicados e leves, adjetivos incomuns quando se tratava de Diana. Apesar de Nico ser apenas alguns minutos mais novo, Diana sentia o dever de assumir o papel de irmã mais velha, cuidar e proteger.
    — Sinto muito pelo Gus — lamentou ela. — Você não tem permissão de acesso à nossa torre, então ele ainda te vê como intruso. Geralmente, nós o trancamos no segundo andar. Só que hoje eu realmente esqueci...
    — Diana — chamou Nico, queria que ela o encarasse nos olhos. — Está tudo bem. É sério. Se o que eu tenho que fazer é lutar com um coelho raivoso para passar um tempo com a minha irmã, vale a pena. Além do mais... — ele fez uma pausa dramática. A mão de Nico brilhou em um vermelho carmesim, passando-a na frente do rosto. Os arranhões e machucados sumiram, dando lugar à uma pele livre de imperfeições. — Novinho em folha, mais bonito do que nunca.
    Diana riu.
    — Você é bonito de qualquer jeito, seu idiota. Mas as ilusões não vão aliviar a dor.
    Nico fez uma careta azeda quando ela passou mais da mistura onde já havia aplicado.
    — É — gemeu. — Você tem razão.
    — Eu sempre tenho.
    As noites de segunda-feira eram reservadas para um momento de reunião entre os dois. O primeiro livro da saga favorita deles — Tormentas do Passado — estava sendo adaptado em uma nova série, com episódios semanais. Diana apreciava aqueles encontros mais do que qualquer coisa.
    Com comida e bebida em mãos, os irmãos se sentaram lado a lado, vibrando no sofá. Casper, que estava em uma das poltronas, mastigava um saquinho com pedras de carvão.
    — Eu ainda não entendi a graça dessa série — comentou, desenchavido.
    Diana deu um pulo do assento.
    — Essa é simplesmente a melhor franquia de fantasia da história! — exclamou enquanto gesticulava. — É sobre aventura, mistério, amor e, principalmente, sobre achar o seu lugar. — tagarelava ela, sem parar. — Uma garota humana acaba se deparando com um mundo mágico e surreal. Ela não tem magia e não faz parte de uma grande profecia. Wick não tem muito a oferecer, apenas um grande coração e um anseio por descobrir o responsável pela morte de sua mãe! Sua jornada é impedida pela temível vilã Astra, que não é nada mais nada menos do que...
    Naquele momento, Casper se arrependeu de não ter ficado quieto. Ele jogou outro carvão para dentro, tentando não dormir com a explicação entusiasmada de Diana. Ela era uma fã dedicada.
    — E depois do fiasco que foi aquele filme ridículo de horrível, preciso me certificar de que essa série será mais fiel à história maravilhosa dos livros! — terminou Diana, sentando-se novamente. O episódio estava prestes a começar.
    Casper continuava sem entender muito sobre os livros, mas aprendera a lição. O melhor era apenas concordar com qualquer coisa que Diana falasse. Agatha, por outro lado, não tinha medo de fazer piadas sobre como o sistema de magia era diferente do mundo real, além de só ter atenção para o pai da protagonista que, em suas palavras, era um gostoso.
    — Ei — sussurrou Nico para a irmã. — Seus amigos são bem legais, sabia disso?
    Diana sorriu, dando mais uma olhada em seu clã.
    — É, eles são. Eu dei muita sorte.
   

As Crônicas de WatherhouseWhere stories live. Discover now