A tolice da monotonia

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Um mês se passou até que estivesse recuperado da exaustão daquela noite de prazer, e percorri as colinas da serra junto à minha irmã em direção a Arath. Minha avó estava doente e precisava de companhia, mas nenhuma de suas filhas (incluindo minha mãe) se prontificou a se mudar para a fazenda e tomar suas dores.Incentivada pelo evento da festa, minha irmã convenceu a mãe a me mandar para a pequena cidade e completar o último ano do ensino médio, temendo que minha aventura houvesse despertado o sangue odioso da família e me incitado a levar tais devaneios febris à luz do dia uma vez mais. 

Não posso dizer que discordo de seus motivos, pois eu nem mesmo conheço meus próprios limites. Sendo assim, não contrariei sua decisão, até mesmo comecei a ver com outros olhos minha nova morada. Apesar de toda a insistência anterior, ela parecia estar com certo receio. Havia esquecido da própria repulsa que tinha da fazenda, dos residentes e da própria cidade e me olhava pelo retrovisor do carro a todo minuto como se tentando convencer a si mesma que tinha sido uma boa ideia.

Diferentemente dela, não tenho quaisquer lembranças amargas desse recanto escondido entre quilômetros de mata atlântica selvagem, intercalada por amplas áreas de pastagem onde o gado se desenvolve. A fonte de renda da família sempre foi a criação de gado desde que meu bisavô Albert Britch comprou aquelas terras a pouco mais de um século, e aprecio o ofício tanto quanto o ocultismo e a música.

Estou decidido a não deixar o desânimo tomar conta de meus dias, reforçando a vontade de vasculhar as prateleiras empoeiradas da biblioteca particular no segundo andar do casarão e mergulhar nos contos macabros resguardados pela poeira secular. Minhas dúvidas com despeito à minha própria família e aos boatos malignos que rondam em torno do casarão me ajudaram a não pensar na opressão das memórias que vêm e vão. Espero que essa vontade perdure e não me deixe cair na melancolia.

Estávamos subindo uma elevação em velocidade baixa quando Lilien me indagou, quebrando o silêncio da viagem.

— Espero que não vá em nenhuma festa maluca em Arath, não vou estar lá pra te buscar e duvido que a vó o fará. Apesar da tranquilidade, há muitos loucos se vestindo com o manto da sanidade. - Comentou num tom amargo como se relembrando de eventos odiosos pelos quais passou - O próprio ar do lugar é carregado de pestilência. Deve ser por causa dos montes que rodeiam a cidade em todas as direções, é quase como uma boca de vulcão.

Dei um suspiro em resposta a sua preocupação exagerada, afinal de contas, lugares febris e ocultos me eram mais calorosos que uma praia em pleno verão. A calmaria era um convite ao pensamento e ao revelar de mistérios e, de certa forma, acreditava fielmente que não haveria lugar melhor pra isso que Arath.

— Eu sei me cuidar. - Acenei com prepotência minha mão - Aliás, duvido muito que tenha qualquer tipo de festa além dos bailes da 3° idade ou ocasionais confraternizações com churrasco e vinho.

Minha irmã torceu o nariz, rindo suavemente da minha resposta como se fosse uma piada infantil.

— Essa ignorância ainda vai te meter em problemas, Edgar – Ela respondeu impaciente, lançando-me o olhar de quem sabe mais do que as palavras conseguem expressar – A cidade é comandada pelas famílias. Nem preciso dizer o quão escrotos podem ser os filhinhos de papais e a que ponto chegam seus fetiches. Fui perseguida por meses por um Veles até me cansar daquele buraco de cobras e ir pra capital.

— Aposto que é melhor do que correr o risco de ser assaltado e levar uma facada ou tiro por simplesmente andar pela calçada. - Retruquei secamente - Eu que deveria estar preocupado com você voltando pra multidão odiosa da capital e sua completa falta de sanidade. Se lembra daquele cara que – Nesse momento fui interrompido por ela.

— Já sei, já sei. O garçom morto por um cliente a tiros por causa de uma discussão sobre o ketchup do lanche. Não precisa me lembrar disso.

— Pois só me fez perder tempo com essa conversa inútil sobre os perigos de riquinhos mimados. - Reafirmei minha resolução convicto de minhas afirmações - Não há nenhum perigo além de algum velho rabugento ou um boi bravo no campo em Arath, isso eu tenho certeza. Quanto aos Seidianos...

— Quanto a eles – Ela enfatizou num tom mórbido, acariciando o anel do dedo anelar – Espero que você não tenha o azar de trombar com nenhum. Tente se manter longe de pessoas estranhas e evitará 90% das chances de encontrá-los. Cidades pacatas são o esconderijo perfeito para esses degenerados e não temos nenhum modo de lutar contra um desde que o pai...

Lilien cerrou os dentes e se calou, tentando disfarçar a menção de seu nome, talvez sentindo um remoer de saudade, um choque elétrico de repulsa ou talvez um abraço da melancolia e, de maneira o mais fria possível, finjo não me importar.

Ocupei meus pensamentos nos Seidianos e no quanto gostaria de estudá-los mais de perto. Claro, não poderia falar isso para Lilien sem que me tomasse como louco.

Ela estava prestes a dizer algo enquanto me fitava pelo retrovisor, seus olhos azuis safira reluziam de vontade, mas suspirou e permaneceu em silêncio remoendo algo que pude perceber em sua expressão que não lhe trazia boas lembranças. 

O silêncio voltou a reinar e mantive meus olhos voltados para a janela.Galgamos os montes escarpados e as depressões abruptas, subindo incessantemente como se escalássemos uma montanha. Diferente do que imaginei a princípio, senti melancolia ao sondar a natureza, e não o êxtase esperado. As árvores de casca grossa e folhagem espessa rangiam como cães raivosos contra o vento, amaldiçoando o impulso de seus galhos em movimentos repetitivos sem grande alteração direcional. A floresta nos saudava com uma recepção odiosa por meio dos estalos e ranger de troncos, enquanto os abismos que se projetavam a poucos centímetros à beira do asfalto eram um convite à insensibilidade da natureza.

Pode ter sido somente uma impressão exagerada em vista da fuligem espessa que pestilhava o ar em razão de uma imensa queimada fulminando a vida natural a alguns quilômetros a leste, talvez magia negra, ou nada a não ser minha vista cansada. De qualquer maneira, não pude conter o sorriso febril escapando por meus lábios. 

Minha irmã se mantinha resoluta, de olhos na estrada, enquanto seus cabelos ruivos acinzentados cintilavam com a força do vento que adentrava pela janela entreaberta. É incrível o quanto deixamos de ver por causa do convívio, e pela primeira vez me dei conta de que nunca vira ninguém além dos membros de minha família que possuía tal cor natural de cabelos. Quão fascinante mistura genética foi feita para chegar a essa coloração me deixou fascinado; sabemos tanto dos outros quanto sabemos de nós mesmos e naquele momento me senti tolo.

Por volta das seis da tarde cruzamos a interseção entre dois montes de rochas de altura prodigiosa que foram escavados há 200 anos pelo genro de Albert Britch. Ainda hoje seria difícil conceber como aquele trecho foi esculpido na rocha sólida da montanha usando picaretas, e duvido muito que outro se eleve da mesma maneira. As marcas das ferramentas na rocha compunham uma pintura rupestre de morbidez sedutora e fomentaram minha imaginação.Preferi me abster a pensar muito aquém do passado e mergulhar em períodos alheios à mentalidade complacente do meu próprio tempo. 

Fixando por um momento meus olhos na rocha, pude sentir os gritos de agonia dos escravos chicoteados e o crepitar de ferramentas empestilhando o ar nos séculos ulteriores, retumbando pelas sombras num sussurro fantasmagórico carregado de mau agouro.

A Dama dos Olhos PrateadosOnde histórias criam vida. Descubra agora