𝟶𝟷 • 𝙰 𝚌𝚎𝚗𝚊

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A gota fumegante deslizou pelo seu pescoço antes de desaparecer no vale entre seus seios. Kate ficou longos minutos naquela posição, apenas observando a trajetória da água por seu corpo. Viu quando o vapor d'água dançou no ar até condensar no vidro. Ela conteve o instinto infantil de escrever algo. Tinha ficado boa em conter instintos que fervilhavam sob sua pele.

Sentia-se vulnerável. Fazia tempo que não se sentia assim, sobretudo em uma camada íntima que nada tinha a ver com o trabalho. Era somente ela, a ardência dos pensamentos e a fragilidade. Uma parte dela, a filantrópica, se sentia mal pelo desperdício de água. Não sabia quanto tempo havia se passado desde que o banho interminável havia começado. A outra parte estava perturbada pela cena que havia gravado com Saoirse naquela noite e precisava de alguma fonte de calor.

Kate sabia que, inevitavelmente, algo a atingiria quando gravasse a cena de sexo com Saoirse. É o tipo de intuição que surge quando você adquire algum repertório na indústria cinematográfica. Às vezes a cena vem naturalmente, às vezes não. Às vezes a química com o parceiro vem intoxicando os poros, e às vezes era só sobre fazer o que tinha que ser feito.

As cenas de sexo que gravou tinham mais de fazer o que tinha que ser feito. Ela era uma boa atriz. Aprendeu a fingir o prazer para as câmeras. Era o seu trabalho. Feche os olhos. Respire ofegante. Deixe-se ser conduzida. Uma ação comum para qualquer ator. Mas nunca havia experimentado verdadeiramente o desejo em cena, não da mesma maneira que era tão fácil acessar outros sentimentos como tristeza, alegria e medo.

Quando leu o roteiro de Ammonite, Kate sabia que ela deveria rever todo o repertório que tinha, porque se tratava de um papel singular e especial. Interpretar estar profundamente apaixonada por uma mulher exigiria dela um nível de vulnerabilidade que a deixava aflita. A necessidade de desaparecer entre suas personagens não era uma novidade, mas construir um romance de época lésbico representava uma outra paleta de emoções em que trabalhar.

Com um homem, nas cenas de sexo há uma certa sequência de ações definidas e repetitivas. Previsível e entediante, ela diria. Não somente no cinema, mas comumente na vida real também. Homens não sabem o que mulheres querem, por isso que as mulheres vez ou outra elas têm que dizê-los.

Ela sempre poderia se refugiar na própria mente quando necessário com um homem. Com uma mulher, ela não enxergava outra alternativa senão entregar-se. Teria que sentir, teria que mergulhar. Ir fundo e fundo.

Quando começou a gravar com Saoirse, viu que não seria difícil fingir atração pela irlandesa. Elas já haviam se encontrado ocasionalmente em algumas circunstâncias na indústria, como em uma entrevista no Actors on Actors da Verity e nos tapetes vermelhos das premiações. Antes mesmo de terem a oportunidade de trabalharem juntas, Kate já estava impressionada com Saoirse. A irlandesa era anos mais nova e ainda assim apresentava confiança e uma carreira sólida que deixou Kate intrigada. Poucas coisas podem chamar mais a atenção de Winslet do que integridade e competência. Saoirse cultivava essas virtudes claramente.

A apreciação mútua veio de maneira natural. Nas conversas no clima gélido do Lyme Regis ou no silêncio confortável nos dias em que as gravações exigiram demais delas. Nas risadas por coisa nenhuma. Na dedicação de Kate ao aprender sobre fósseis e de Saoirse em aprender piano. As pequenas grandes interações humanas que fazem surgir a intimidade.

Kate pegou a si própria diversas vezes compenetrada com a eloquência de Saoirse. Winslet era falante, gostava de usar as palavras apaixonadamente, mas Saoirse a transformou uma boa ouvinte também.

Kate, de repente, queria ouvir qualquer coisa que a mais nova quisesse compartilhar. Tentava se prender a qualquer suspiro mais vulnerável que saísse da garota. Não porque Saoirse era quieta ou fechada, mas porque Saoirse tinha facilidade em esconder-se na própria profundidade. Kate percebeu isso. Kate notou o líquido borbulhando por detrás de tanta beleza juvenil.

Hipálage | AmmoniteDonde viven las historias. Descúbrelo ahora