ℭ𝔞𝔭𝔦𝔱𝔲𝔩𝔬 2

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Darlan

" — Quer uma maçã? Eu pego para você."

Aquelas palavras rondaram mais uma vez meus pensamentos, a única lembrança do sonho que tive na noite anterior. Eu queria acreditar que se tratava apenas de um sonho, precisava acreditar. Mas, por mais estúpido que parecesse, uma parte de mim ainda nutria esperanças de lembrar do passado, mesmo depois de quatorze longos anos. Toda vez que pensava ter aceitado, superado aquilo, algo acontecia para me fazer voltar ao redemoinho de palavras soltas, imagens desconexas e memórias incompletas de alguém que fui, mas não conseguia descobrir. No final, estava condenado a viver sentido que faltava algo. Estaria eternamente incompleto.

Só que não podia me entregar aquilo, e o que um guerreiro faz quando algo o perturba? Ele luta até a exaustão silenciar sua mente. Claro, existem outros métodos mais mundanos e libertinos, entretanto, em dias de trabalho isso não é uma opção. Com tal pensamento acabei no pátio de treinamento enfrentando Gyeong.

Ele era um homem da Dinastia Gojoseon, com aqueles estranhos olhos puxados e o cabelo liso e preto como penas de corvo. O que tornava Gyeong gritantemente diferente dos homens de seu povo era seu tamanho minúsculo e o corpo mais afeminado, ele possuía lábios carnudos e cílios fartos, sua cintura era assustadoramente fina apesar do físico musculoso. Os soldados costumavam fazer piadas com ele pelas costas por causa disso, e também por seu comportamento reservado. Gyeong não bebia nem saia com ninguém, nunca o vimos ir com nenhuma mulher, vivia apenas pelo dever e nisso ele era o melhor.

Balancei a cabeça tentando silenciar minha mente e focar no oponente a minha frente. Eu o atacava repetidamente com a espada, tentando mantê-lo na defensiva até criar uma abertura, não podia de forma alguma me dar ao luxo de recuar. Nossa diferença de força é considerável e sou muito maior, mas Gyeong pode compensar cada uma de minhas vantagens com seu estilo de luta único e imprevisível. Ele é ágil, ardiloso e perspicaz, o que o torna letal é seu costume de atacar uma única vez. Ele sempre ataca para matar, mesmo nos treinos.

Desviando com precisão e usando sua espada apenas para redirecionar um golpe ou outro, ele se mantinha afastado e sorria das fúteis tentativas de acertá-lo. "-Quer uma maçã? Eu pego para você." Minha voz infantil ecoou por minha mente me fazendo piscar, foi o suficiente. Consegui ver o exato momento em que a pequena víbora traiçoeira percebeu a abertura em minha defesa e atacou veloz como um raio, em um piscar de olhos ele bateu o cabo de sua espada em minha mão, me desarmando. Se seguiu então um borrão de golpes rápidos que tiraram meu equilíbrio, o permitindo me derrubar rapidamente. Fechei os olhos e esperei a dor de cabeça que se seguiria assim que atingisse o chão. Ela nunca veio.

— Você se distraiu.- Gyeong se projetava acima de mim, segurando a gola de minha camisa, impedindo minha cabeça de colidir com o chão. — Dessa forma, não é divertido humilhá-lo.

— Eu não bato em mulheres. — Debochei. Ele respondeu soltando a camisa. — Ai!

— Não bate por saber que não teria chance contra uma guerreira. Tem medo da derrota, general.

Resmunguei algo sem sentido com os olhos fechados, aproveitando brevemente os raios de sol tocando meu rosto coberto de suor. Quando os abri novamente, segundos depois, Gyeong havia desaparecido. "Maldito aprendiz de fantasma, sempre me deixa falando sozinho."

Apesar do intenso desejo de aproveitar mais um pouco o clima recém-chegado de primavera, me levantei e fui até o quarto trocar de roupa. Queria me lavar, mas acabei apenas passando um pano molhado pelo corpo antes de ir para o escritório cuidar de minhas tarefas.

Confesso que não gostava da parte burocrática de meu ofício, preferia a energia dos campos de treino, a interação com os soldados, amava a liberdade de cavalgar enquanto patrulhava a cidade. Me considerava um homem hiperativo, o que tornava qualquer atividade que requisitasse um certo foco e pouca movimentação em tortura. Os criados já estavam acostumados com meu hábito de ficar andando de um lado para o outro no escritório falando sozinho em voz alta, era a melhor forma que consegui de focar em minhas tarefas ao invés de procrastinar até o último instante.

Melodia da MorteWhere stories live. Discover now