ℭ𝔞𝔭𝔦𝔱𝔲𝔩𝔬 1

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Rashne

Eu não deveria estar aqui.

Mesmo sabendo de todos os riscos, decidi me aventurar no fétido beco nas margens da cidade. Era um local mal iluminado, com uma estalagem de procedência duvidosa de um lado e uma casa, na qual os residentes já haviam se recolhido àquela altura da noite, do outro. Encostado no muro, estava a figura encapuzada que até aquele momento eu desconfiava que não viria. 

Tínhamos uma relação de parceria movida pela desconfiança, eu o pagava bem pelo serviço e em troca de uma gorjeta generosa ele não me traía. Mas isso sempre podia mudar. Já havia aprendido há muito tempo a não confiar, nem mesmo nas crianças. As consequências daquilo me assombrariam pelo resto da vida. 

— Trouxe meu pagamento? — A voz rouca e anasalada de fumante se projetou pelo beco silencioso. 

— Primeiro o serviço, — disse impaciente enquanto apalpava a adaga escondida abaixo do manto, — então cumprirei com o prometido. 

Resmungando, ele estendeu a mão em minha direção segurando um envelope de cor marfim. Aquele diferia dos que ele havia me entregado nos últimos anos, possuía até mesmo um selo sem brasão definido. 

— O que significa isso? — Me recusei a tocar o item duvidoso. 

— O quê? O envelope? Tive dificuldade de sair dessa vez, não fui pego, mas tive que improvisar.  É bom me pagar bem, essa porcaria saiu caro. 

Respirando fundo, peguei a carta e guardei em segurança em um bolso interno da capa. Não perdi tempo com despedidas, apenas joguei o saquinho para ele. O som do tilintar das moedas caindo no chão acompanhado do xingamento me seguiram quando entrei na estalagem pelos fundos. 

Como de costume, os funcionários me ignoraram quando atravessei a cozinha em direção à saída da frente. Atravessei o balcão e parei bruscamente, fazendo um homem esbarrar em mim. Mal ouvi suas reclamações enquanto me desculpava, estava ocupada olhando para a última pessoa do mundo que eu queria ou esperava ver ali. Se Kalil me visse, seria meu fim. 

Como era um sujeito muito correto, seguindo irritantemente as regras à risca, nunca me ocorreu que ele iria num lugar como aquele beber ou fazer outras coisas. Era um imprevisto para o qual não estava preparada, me deixou paralisada, o encarando descaradamente. Só consegui me mover novamente quando seus olhos encontraram os meus, então atravessei o salão o mais rápido que pude sem correr. 

Estava torcendo para que ele não tivesse me notado, mas sua figura me seguindo destruiu minhas esperanças. Fui óbvia demais. Assim que sai para a rua comecei a correr como se minha vida dependesse disso, o pior é que realmente dependia.

Na verdade, até tinha um plano para situações como essa, havia estudado os mapas e feito uma rota de fuga de emergência. Mas à medida que avançava as ruas se tornaram um borrão e no final não fazia a menor ideia de onde estava, virava na primeira rua que punha os olhos, sem sequer me importar se era direita ou esquerda, para dentro ou fora da cidade. Em uma das curvas tive que parar bruscamente, senti, diante daquela visão horrenda, meu coração pular uma batida. 

Os passos atrás de mim marcavam a aproximação do meu fim iminente, olhei ao redor procurando uma saída enquanto amaldiçoava o muro à minha frente. Não havia mais nada que eu pudesse fazer além de enfrentá-lo, o resultado seria catastrófico. 

— Aqui está você. — Kalil disse quando me virei para confrontá-lo. — Pensei que iríamos brincar de gato e rato a noite toda. 

Não respondi, torcendo desesperadamente para aquele tom de voz debochado ser um indício de que não me reconheceu.  

Melodia da MorteWhere stories live. Discover now