Essa história é inútil

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Os dedinhos ágeis dela percorriam o teclado de maneira majestosa. O tão famoso TCC precisava ser concluído, já que a orientadora conseguiu, mais uma vez, encontrar milhares de erros que a graduanda nem sequer haveria notado. Contudo, por mais que os dedos digitassem arduamente, a mente da estudante oscilava entre presente e passado. Não que essa oscilação fosse um evento incomum na vida da garota, mas hoje as coisas começavam a sair um pouco de seu controle.

Uma agitação constante: era com isso que as pessoas que convivam com Martinha estavam acostumadas. A jovem mulher fazia de tudo e mais um pouco, sempre preocupada com cada detalhe. Durante a manhã, trabalhava na escolinha ensinando o beabá para aqueles pequenos que gritavam "Tia, tia!" por todo o canto. Amava aquilo, por mais desgastante que pudesse ser.

A tarde era dedicada ao lar e à família, já que morar com pai, mãe, irmão, vó, tia, primo, gato cachorro e calopcita exigia a colaboração de todos, ainda que, no fim, Martinha colaborasse praticamente só. Queria ser prestativa, ajudar, afinal eram parte de uma equipe, não eram? Lavava as roupas, fazia comida, limpava a casa, de vez em quando dava a louca e capinavaa a entrada do quintal e, de quebra, aconselhava os familiares e preparava todo o material de suas aulas, afinal, professora nunca trabalha em meio período. Os outros habitantes não eram tão prestativos quanto ela, o que por vezes entristecia a moça.

As noites eram reservadas para as aulas e atividades de sua faculdade de pedagogia, além das idas à academia duas vezes por semana. Por falar em semana, aos fins de semana a jovem sempre buscava um tempinho para encontrar o namorado, rever os amigos e manter-se ativa na igreja. Profissional, físico, pessoal, intelectual, espiritual e social em dia. Tudo nos conformes.

Mari, sua melhor amiga-irmã, sempre vendo tanta garra e energia, brincava dizendo que só faltava Marta entrar para um time de futebol e ser a próxima camisa 10 da seleção. E Martinha realmente cogitou encontrar um espacinho em sua agenda para dedicar-se ao esporte. E enquanto citava o "Sapere Aude!" de Immanuel Kant para defender sua tese, vez ou outra a jovem lembrava-se de Mari. E de algumas palavras da amiga.

Se tinha algo que a Martinha detestava era ser um inconveniente e sentir-se um peso para seja lá quem fosse. Para ela, já era o suficiente saber que sua mãe perdeu a juventude para carregá-la por nove meses na barriga. Uma gravidez não planejada na adolescência, foi assim que ela veio ao mundo, sem ser convidada e muito menos desejada. Existe uma memória de sua avó comentar sobre, na época, haver uma possível tentativa de aborto. Mas era algo meio nebuloso em sua mente, algo entre um lembrança e um pesadelo muito ruim.

Apesar dos pesares, a moça cresceu em uma família boa. Não era estável financeiramente, nem tão unida, pacífica ou bem estruturada. O importante é que mesmo com os defeitos, cresceu no meio de gente boa, gente honesta, gente que a ensinou a ser gente. Ensinarm-na a ser gentil e educada. A ser responsável. Que não podemos ser egoístas e sim nos doarmos pelos outros, e como a vida de um eu não faz sentido sem o nós.

E ainda que tenha crescido numa família boa, estude, tenha emprego, amigos, namorado, vá à igreja e tenha um corpo saudável, naquele dia, ela sentia-se absurdamente estranha. Estranha como há muito tempo não se sentia. Ou talvez só não tenha tido tempo para reparar em si mesma. Algo faltava, algo não estava bom, mas o que? Teria esquecido de referenciar outro autor importante para sua dissertação?

Bem, talvez, só talvez, tenha realmente algo a ver com a briga daquele sábado. Lembra da Mari? Pois é, Mari simplesmente falou algumas coisas que há duas semanas, em momentos esparsos martelavam na cabeça de Martinha. Uma inquietude sem fim. Em um primeiro instante, ela só negou, pensou que a amiga estava ficando doida e entendendo tudo errado. Mas, se era mentira, por que a incomodava tanto? Por que a incomodavam tanto aquelas palavras?

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⏰ Last updated: Jan 06 ⏰

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