◇ Aos Ouvintes da Rádio Oráculo ◇

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Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir perdão, caso a apresentação tenha os deixado excitados. Nosso relato não começa com uma luta grandiosa, ou com revelações surpreendentes e fascinantes. De fato, as coisas nem sempre foram agitadas para nossos jovens. Ou talvez a agitação fizesse parte da rotina, de maneira que aparentava ser mais uma falta de sorte sem fim do que uma predestinação ao fantástico. Achei então, de bom grado, começar por um dos dias mais calmos para os jovens.
O vento matinal mais frio e seco - que obrigava os desavisados a se encolherem em suas roupas -, e o acúmulo de folhas amareladas nas janelas quadriculadas da torre marcavam de forma clara a passagem para o outono. A voz que saía do rádio e reverberava pelas paredes de pedra remetia a uma noção de rotina matutina que arrancava bocejos.
"Bom dia, Amadiya. Você está escutando a Rádio Oráculo, a sua melhor fonte de notícias.
Nesta manhã de segunda-feira, os investigadores da Central afirmam não terem obtido mais nenhum progresso com o caso Bettlefield. As evidências continuam sem apontar suspeitos. O Culto de Lúcifer não deu mais nenhuma declaração frente às acusações públicas.
Por outro lado, hoje faz 25 anos desde que o assassino em série, conhecido com O Inquisidor, foi detido e levado à justiça pela renomada bruxa, Valerie Watherhouse. Pierre de Lancre, o Inquisidor, continua em prisão perpétua.
Mas como nem só de desastres se vive uma bruxa, é com grande prazer que a Rádio Oráculo anuncia o 50° Witch Games! O evento mais esperado do ano por jovens bruxos e bruxas que buscam provar o seu valor. Fomos informados pelo Colégio Hécate que os jogos começarão ao final de setembro e contarão com a segurança e supervisão de bruxos profissionais, então não precisam se preocupar. Vale também lembrar que-"
Click.
- Ei. Eu estava ouvindo! - a garota protestou.
- Sinto muito, Di. Mas a gente já teve blá-blá-blá o suficiente sobre os jogos - Casper deu de ombros.
Diana suspirou. Não deixava de ser uma verdade. Para qualquer outro grupo, o evento seria uma ótima oportunidade de conseguir indicações no meio bruxo, mostrando suas habilidades em estratégia, magia e combate. Magia. Esse era justamente o problema dos três. Por isso ouvir tanto sobre o Witch Games os deixava tão ansiosos, e não de uma maneira boa - se é que há uma boa maneira de estar ansioso.
A garota que estava sentada no chão com algumas cartas em mãos resmungou alto. Alto até demais.
Agatha era uma bruxa baixa, com pequenos chifres no topo da cabeça e orelhas pontudas de elfo. Irritada, ela parecia aqueles pequenos monstrinhos, aqueles que não podem ser alimentados após a meia-noite. Pelo menos, era o que Diana achava. Não que ela fosse mencionar isso à amiga.
- A Roni continua falando como se fosse o melhor acontecimento do mundo! - grunhiu a ruiva.
Como um demônio que precisava ser invocado pelo nome, a mulher passou pela porta principal marchando de forma alegre. Roni era uma bruxa de expressões amigáveis, cabelos curtos e negros, e duas pequenas mechas rosas na franja, uma de cada lado. A pele era de um marrom claro com um fundo avermelhado, que fazia Diana pensar em cobre. Os seus olhos eram escuros e quentes como café. Na cabeça, descansavam os óculos de aviador com detalhes dourados, assim como seus brincos.
Seu sorriso desapareceu ao botar seus olhos nos três adolescentes ociosos, largados no salão de recreação da torre.
Diana puxou depressa um livro que estava escondido sob as almofadas. Agatha varreu as cartas para debaixo do sofá. E Casper agarrou um caderno que estava, antes, sendo utilizado para marcar os pontos do Bruxopédia - um jogo em que você precisa dizer ao menos um feitiço, um objeto e o nome de um bruxo famoso com a inicial da letra sorteada.
Roni os encarou com seu típico olhar de desaprovação, o que não durou mais do que alguns segundos. Havia passado tempo o suficiente com o trio para saber que seus alunos não eram um poço de disciplina. Mas ter um acesso de mau humor por conta disso não ajudaria, tampouco mudaria alguma coisa.
Ela apenas colocou sua melhor máscara de crédula e agarrou as sacolas em suas mãos com mais força, jogando algumas sobre o ombro. Rumo ao segundo andar, subiu as escadas curvas de pedra. Antes de pisar no último degrau, Roni ouviu um barulho parecido com o de cascalho. Ela suspirou e tentou contar até dez mentalmente, mas antes que chegasse ao quatro, o barulho se fez mais alto.
Roni podia não querer gritar com seus alunos, mas nada a impediria de despejar sua raiva em Gus, o protetor da torre. Ele era um pequeno ser feito de pedra e tinha o formato de um coelho, mas com o tamanho de um gato. As gárgulas eram designadas a proteger as torres onde os alunos residiam. E Gus estava fazendo um péssimo trabalho.
O pequeno rato orelhudo, como Roni o chamava, estava dormindo em cima de uma mini pilastra de mármore. Seu ronco podia ser ouvido de toda a torre. Se a presença do vigia não fosse obrigatória, ela já teria o lançado da janela há tempos. Pelo menos as crianças pareciam gostar dele, mesmo que ela não entendesse o porquê.
A mão direita de Roni reluziu em um tom de amarelo e ela moveu o indicador, assim movendo junto a pilastra na qual Gus estava tirando o melhor cochilo de sua vida. Ele deu de cara no chão com um alto e forte baque, e Roni até sentiu o chão tremer sob seus pés por um momento.
Gus acordou assustado e em uma pose fajuta de karatê, pronto para se defender.
- O que tá 'contecendo? - dizia ainda grogue. - Quem é o desgraçado, filho de Lúcifer que está atacando a torre?
Roni bufou impaciente.
- Você é a maior ameaça que essa torre possui, orelhudo - afirmou revirando os olhos.
Ela não ia deixar aquele pedaço de pedra que não tinha nem um metro de altura arruinar seu dia.
Roni seguiu até a pequena biblioteca, que ocupava metade do segundo andar. Os trẽs jovens usavam como uma sala de estudos, e muitos livros eram na verdade emprestados da enorme Biblioteca de Kvasir, situada na escola. A outra metade do andar era reservada à uma área de treino prático, com sistemas de segurança e aparelhos de suporte. O primeiro andar era a sala de recreação e a cozinha, enquanto o terceiro era preenchido pelos quartos. Havia um sotão também, mas Roni os advertiu a não entrarem lá, pois não sabia se era seguro e poderia acabar sendo repreendida pelo diretor em caso de acidente.
A professora largou as sacolas em cima da mesa.
- Casper, Agatha e Diana! - gritou, recuperando um pouco de seu entusiasmo. - Aqui! Agora!
Os três pularam do sofá como se suas vidas dependessem disso. Não queriam gastar o pouco de paciência que ainda restava à Roni. Em um instante, encontravam-se um ao lado do outro e de frente para a mulher, os braços atrás das costas.
Roni os analisou por um momento. Podiam até parecer pequenos adultos com suas expressões sérias e concentradas, mas a verdade é que eram apenas crianças. Tudo bem, crianças de quinze anos, mas ainda crianças. Não deveriam ter que lidar com tantas palavras cruéis que ela sabia que os outros estudantes proferiam em relação ao clã. Começando pela alcunha que lhes foi dada. Eles podiam não ser os melhores, mas tinham os melhores corações daquela escola, disso Roni tinha certeza.
Casper era um garoto jovem com cabelos pretos presos em um frouxo rabo de cavalo, que na maior parte do tempo eram cobertos por um gorro. O tom de sua pele recordava o marrom de uma pinha. Suas duas mechas verdes sempre despontavam do resto. Dos três, era o mais reservado e possuía um humor ácido, com um tempo excepcional para piadas. Apesar disso, era um bruxo respeitoso com suas companheiras e tomava conta de ambas. Os olhos amarelos vivos e os dentes mais afiados eram resultados claros da sua herança dracônica.
Agatha era uma bruxinha ávida por conhecimento, sempre com a cara enfiada em um livro novo. Determinada em melhorar a cada dia e fazer alguma de suas poções funcionar corretamente. Era desbocada e, às vezes, mais sem filtro do que Roni. Os cabelos laranjas de Agatha a faziam lembrar do fogo. E, de certa forma, condizia com sua personalidade: intensa. Sua pele era de um bege amarelado, bem comum entre os elfos.
E por fim, Diana. Ao encarar a garota, o coração da professora pesou. Ela deveria ser a que mais sofria com comentários maldosos, mesmo entre o trio.
Diana tinha pequenas cicatrizes espalhadas pelo rosto alvo, cicatrizes de corte que a garota disse ter ganhado em um acidente em sua infância. Nunca quis entrar em detalhes. Seus cabelos castanhos escuros eram volumosos e selvagens, mesmo tendo sido penteados diversas vezes, com uma pequena trança roxa em cada lado do rosto. Os impetuosos olhos vermelhos encaravam Roni com expectativa. Diana também era deficiente auditiva, mas com a ajuda de seus aparelhos, ela conseguia ouvir perfeitamente.
Entretanto, não eram esses os motivos de tanta rejeição por parte das outras pessoas. Apesar dos três terem problemas com magia, o de Diana era ainda mais grave. Diferente de seus amigos, a bruxa não conseguia executar sequer um feitiço simples. Haviam até mesmo especulações de que talvez Diana nem tivesse nascido com magia. Somando tudo isso, obviamente, o psicológico da jovem ficava abalado.
"Droga, Roni!", pensou a professora. "Não é hora de sentir pena do seus alunos."
Antes que os adolescentes questionassem seu silêncio, Roni meteu a mão dentro de uma das sacolas e retirou três pedras escarlates, logo em seguida jogando cada uma em direção a um de seus alunos. Agatha teve que dar um pulinho para agarrar a sua, quase caindo no processo. Casper mordia a dele.
- Tira isso da boca, Caz! - repreendeu Diana, examinando a própria gema.
Roni coçou a garganta, recuperando a atenção.
- Vocês sabem o que são essas pequenas pedrinhas preciosas?
Agatha levantou a mão abruptamente, e os reflexos de Diana foram testados naquele momento.
- Eu sei, eu sei! - disse com os olhos brilhando. - Essas são Pedras de Guardar. Os bruxos usam essas gemas para armazenar objetos valiosos, assim eles podem invocá-los quando precisarem, em qualquer lugar.
Roni bateu palma e apontou para Agatha.
- Muito bem, Aggie - elogiou com orgulho. - Hoje vocês vão aprender a utilizar essas belezinhas, até porque elas salvam vidas. Eu quero que cada um selecione três objetos, que tenham valor para vocês, e então vão colocá-los em suas pedras.
- Roni - chamou Diana, quase em um sussurro. Ela parecia constrangida. - é que, você sabe, eu... eu não consigo-
- Eu sei, criança. Está tudo bem - tranquilizou Roni. Ela colocou sua mão no ombro de Diana, dando-lhe um aperto reconfortante. - Você não precisa de magia para fazer isso. A pedra já tem todas as propriedades de que precisam.
Diana respirou aliviada, com um sorriso trêmulo no rosto. Ao menos uma aula em que ela se sairia bem.
- Muito bem! Peguem suas coisas e me encontrem na área externa do colégio. Vocês sabem, nosso ponto de sempre.
E com isso, Roni desapareceu pela porta da torre.
Enquanto Casper e Agatha subiram o lance de escadas como dois duendes prontos para estragar o dia de alguém, Diana levou seu tempo para processar a pequena pedra em sua mão. Ela tinha o peso de uma borracha e era do tamanho de uma tampinha de garrafa. Era muito estranho como poderia caber tanto ali dentro sem pesar absolutamente nada.
Não querendo ficar para trás, Diana correu para o seu quarto. Ele ficava entre o de Roni, que era o último do corredor, e o de Casper. Frente a esse tipo de situação, a garota ficava feliz por poder apenas desligar o aparelho auditivo e relaxar. Caz tocava guitarra e Roni tinha o irritante hábito de ouvir suas músicas no volume máximo, o que traria muita dor de cabeça, caso contrário.
Os dormitórios eram uma parte essencial da torre. Todo aluno e professor tinha o quarto personalizado de acordo com seus gostos e personalidades, de modo que transmitisse o máximo de conforto e segurança. Além disso, o nome do proprietário do quarto ficava gravado, em dourado, na madeira escura da porta.
Diana inspirou, sentindo o aroma de menta e canela inundar seu olfato. Suave e forte. Quente e refrescante. Duas essências que divergiam entre si. Um equilíbrio incomum. E essa era mais uma característica mágica da torre: cada quarto possui um tipo diferente de odor. Não importa o quanto você o limpasse, ele não poderia mudar. Porém, Diana não se importava, havia tipos muito, muito piores de cheiro. Menta e canela parecia divino.
Sua cama, com um edredom xadrez vermelho todo emaranhado, ficava encostada no canto da parede, bem ao lado da janela. Diana gostava de admirar as estrelas enquanto tentava dormir, elas a faziam lembrar de seu irmão. A parede adjacente à da janela era coberta por pôsteres e fotos, mas o maior entre eles era o pôster da banda preferida de Diana: As Fúrias. O mesmo símbolo de caveira com presas também estampava as costas da sua jaqueta jeans, um pouco escondida sob o capuz vermelho.
Uma dupla de estantes abrigava sua saga de livros favorita, além dos livros utilizados nas aulas. Todos muito bem organizados e enfileirados. Porém, havia um livro solitário de cabeça para baixo na escrivaninha ao lado da cama, o qual mal havia sido tocado. Diana bufou. Era um livro de autoajuda, presente da coordenadora da escola. Ela não precisava daquilo. Não precisava de ajuda. Ela não precisava de conserto, porque não estava quebrada.
Sentindo a raiva tentando queimar dentro dela, Diana focou em se enfiar debaixo da cama para esmagar esse sentimento. Ela puxou uma caixa de madeira comprida para fora e abriu as travas. Fazia tanto tempo que não utilizava o objeto para treinar que esquecera de como era ter o peso de uma espada em suas mãos.
Mesmo com a bainha, Diana podia sentir o calor que a lâmina emitia. O cabo era de bronze, com as pontas da guarda semelhantes a dois pequenos chifres que apontavam para cima, um olho esculpido de cada lado. Havia uma estrela feita de rubi que enfeitava o centro. A empunhadura era revestida com couro vermelho e o pomo era triangular com uma pequena esfera dentro. Supostamente, ela deveria brilhar quando acionada pela magia de Diana. Irônico, não?
Diana ainda separou mais um caderno e uma caneta, e também a vassoura guardada dentro de seu guarda-roupa. Ela era simples, feita de madeira avermelhada e cerdas pretas.
Casper e Agatha esperavam pela amiga fora do quarto, enquanto discutiam sobre gostos musicais. Não queriam deixá-la para trás. E assim, desceram os lances de escadas juntos, acenando uma despedida para Gus, que continuava a roncar mesmo após a bronca que levara.
- Vem cá, o que vocês escolheram? - perguntou Agatha, quando já estavam caminhando pelos corredores antigos, porém sempre impecáveis, do colégio.
- O essencial para um bardo, é óbvio - Casper disse levantando os instrumentos em suas mãos. A guitarra verde estava decorada com diversos adesivos de dragão, enquanto a flauta tinha um crânio de pássaro na ponta. - Essa flauta foi um presente da minha mãe, e essas duas machadinhas aqui, - apontou para as costas. - do meu pai. São... muito especiais para mim.
Diana assentiu.
- Entendo - disse com os olhos focados no caminho. Falar sobre a família nem sempre era fácil para ela. - A espada foi um presente da minha mãe, quando eu tinha seis anos - os outros dois riram, o que a fez sorrir apesar de tudo. - Eu tô falando sério!
- Meus pais não me deixaram chegar perto das facas da cozinha até os meus doze - reclamou Agatha.
- A minha mãe é... diferente. Vocês sabem! - Diana suspirou.
A lâmina era feita de aço demoníaco e lava condensada. Cortava qualquer coisa, qualquer um. Talvez aquele fosse um dos bens mais importantes para Diana. Além de ser um presente da mãe, era também um símbolo de força. Toda vez que ela encarava a espada, lembrava-se das duas pessoas em quem ela mais se inspirava, e do porquê precisava continuar tentando. Queria ser tão forte quanto aquela arma.
- E a vassoura? - perguntou Casper, trazendo a amiga de volta de sua própria cabeça.
- Eu tenho desde criança. Se eu soubesse como voar, talvez seria mais útil... Ah, e bem, eu também trouxe um caderno para fazer anotações.
Casper ergueu a cabeça e fingiu tédio com a afirmação de Diana. Ele preferia muito mais a prática do que a teoria.
- Bom, nós falamos sobre nossos sentimentos aqui. Inclusive, acho que é o suficiente para mim por uma semana. Agora, é a sua vez, Agatha.
As bochechas da garota ficaram coloridas como dois morangos selvagens.
- Eu trouxe minhas poções e o meu tarot, que é minha segunda melhor via para comunicação espiritual - Agatha deu duas batidinhas na sua bolsa, coberta por broches fofos de animações e cogumelos. - E... hã... o cajado, assim como os objetos de vocês, também foi dado pelo meu pai.
Casper riu, cutucando as amigas com os cotovelos. Elas ficaram sem entender a graça na situação.
- Falando assim, parece que nenhum de nós tem problemas com os pais.
Diana revirou os olhos e o mandou calar a boca, mas Agatha se juntou às risadas. Dois idiotas.
Tão absortos na própria conversa, não notaram o outro trio se aproximando na direção oposta até que Diana escutou a risada da última pessoa que queria encontrar. Se as duas fossem as últimas sobreviventes da face da Terra, Diana iria preferir ser engolida por um esquilo-aranha. "Oh, Lilith. Por que tão cruel?" era o que se passava dentro de seus pensamentos.
Bom, eu não sou. Existem coisas que simplesmente estão fora de meu controle.
- Watherhouse! - a garota gritou. Ela vinha em uma caminhada lenta, como um leão que observa sua presa. - Justamente quem eu queria encontrar!
Megara era o tipo de pessoa que, no momento em que ficava obcecada com alguém, poderia colocar o mundo abaixo para destruí-lo. Era exatamente o que fazia com Diana há cerca de dois anos. Vaidosa e convencida, mas com propriedade para se exibir, poucos ousavam desafiá-la. A pele bege era coberta por sardas, o cabelo ruivo bem claro sempre rente a nuca, junto a uma franja desfiada com mechas verdes. Os olhos esmeralda combinavam com a jaqueta esportiva.
Diana xingou baixinho. Ela era perfeita, de uma maneira irritante.
Atrás dela, andavam outros dois membros do clã, similar a uma gangue de motoqueiros. Theseus era um garoto branco grande e encorpado, os cabelos escuros presos em uma trança, e um sorriso arrogante permanente. Sua presença era irritante e ofensiva. Lucy era o oposto. Apesar de fazer parte daquele círculo, era a mais gentil e tranquila. Sua pele era de um marrom quente e as ondas de seu cabelo eram amareladas como um raio de sol. As orbes douradas sempre inquietas e observantes.
- Nós acabamos de voltar de nosso treino matinal, sabe? A professora nos deu uma canseira - então, Megara decidira tocar na ferida. Ótimo, nada de novo no horizonte. - Mas ela é maravilhosa, excelente em tudo que faz. Estou até feliz que ela elogiou o meu desempenho hoje!
Algo corroía Diana de dentro para fora, assim como um cupim que vai abrindo buracos até que toda a estrutura desmorone. Ela queria tomar a frente e desafiar Megara, inundá-la com todas as palavras não ditas, revidar todas as ofensas que recebera calada. Estava tão cansada das lutas diárias. Tão cansada, irritada.
Um sentimento familiar a fez hesitar. Uma força que a atraia para trás. Mãos invisíveis que a acorrentavam no lugar. Os músculos latejavam, clamando por um acerto de contas.
- Você ainda gosta desses livros ridículos? - Megara agora estava tão perto, e brincava com o broche na jaqueta de Diana, da Saga Wick. - Mas eu entendo porquê gosta tanto deles, Diana. Uma protagonista fraca de mais uma fantasia esquecida que ninguém vai lembrar o nome. Soa familiar?
Casper deu um passo à frente e formou uma barreira entre Diana e Megara. Seu olhar era de um dragão furioso.
- Já chega, Megara. É melhor se afastar.
Theseus o agarrou pelo colarinho da camiseta, os pés deixando o chão.
- Para alguém que depende tanto da língua para fazer magia, - o sorriso de Theseus era cínico. - você fala demais, Draken.
Casper tentou rir em deboche.
- Pelo menos eu não dependo de todo esse excesso de músculos para compensar o meu minúsculo-
Uma dor sufocante explodiu em seus pulmões quando suas costas encontraram a parede mais próxima. As machadinhas em suas costas fazendo pressão contra a pele e deixando tudo pior.
- Deixa ele em paz! - Agatha gritou ao erguer o cajado, que foi tirado de suas mãos por uma trepadeira.
- Ops! - Megara agarrou o objeto no ar. As mãos brilhando em um verde musgo. - Deveria ser mais cuidadosa com seus pertences, pequena elfo.
Diana se percebeu em um impasse. Não sabia o que fazer, as coisas aconteceram tão rápido. Talvez fosse melhor afastar Theseus... Não, a melhor chance que tinham era recuperar o cajado de Agatha. Pelo menos ela poderia fazer alguma magia. Porém, Diana era forte, podia derrubar o garoto. Céus, o olhar questionador que Lucy lhe dava não ajudava em nada seu furacão de pensamentos.
Uma luz rubra cobriu o corpo de Theseus. Antes mesmo de qualquer reação, ele foi lançado para o fim do corredor com uma força surpreendente. Caz caiu sentado no chão, a mão massageava o pescoço dolorido.
Diana conhecia aquele tom de magia.
- Algum problema aqui?
A voz ao seu lado quase a fez pular. Não havia notado a presença da garota. Ela estava à sua esquerda, braços cruzados e as mãos reluzindo em vermelho.
Cristina Draken, irmã de Casper. Os cabelos trançados em dreadlocks batiam acima dos ombros e tinham a mesma cor que os do irmão, o tom da pele um pouco mais escuro. As orelhas eram pontudas assim como as de Agatha. Além disso, a garota tinha uma joia rosada no meio da testa.
E ela não estava sozinha.
Ao lado de Cristina, estava Robin. Ela era alta e robusta, devido aos anos trabalhando na forja de artefatos e armas. Tinha cabelos castanhos escuros e bem curtos, provavelmente para não atrapalhar seu desempenho. Sua pele branca estava suja de carvão, na região do rosto. Elas deveriam estar voltando de algum tipo de treino.
Mas estava faltando alguém.
- Você está bem? - Diana sentiu uma mão reconfortante em seu cotovelo direito. Olhos verdes azulados a examinavam em busca de ferimentos.
O coração da garota flutuou e, por um momento, achou que havia perdido o chão igual ao amigo. Estavam tão perto. O máximo que conseguiu fazer foi balançar a cabeça, as palavras estavam com dificuldade em se formar.
Yelena sempre teve esse poder sobre Diana. E não era atoa.
O cabelo azul marinho amarrado em um rabo de cavalo, como de costume. A franja que cobria parte de suas sobrancelhas. A pele rosada e pálida, que ao mesmo tempo aparentava tão calorosa. E um sorriso tão acolhedor, o qual quase fazia Diana esquecer da realidade. Quantas vezes não se pegou cogitando a ideia de começar uma interação com Yelena?
Naquele momento, Diana havia se desligado da conversa por alguns segundos. Até que a voz de Yelena a resgatou.
- Qual o problema, Megara? Não gosta de brigar com leões do seu tamanho? - Yelena encarava a garota com um olhar incisivo.
O cajado de Agatha caiu no chão com um baque. Megara riu.
- Não precisa ficar tão estressada, Lena - zombou e ergueu os braços. - Estávamos apenas brincando.
- Sim, porque você é conhecida por ser hilária - resmungou Robin.
Enlaçando Lucy pelo pescoço, Megara acenou um adeus petulante para todos e virou as costas, rindo uma última vez de Diana.
Assim que os três desapareceram de vista, Agatha correu até Casper para auxiliá-lo. Cristina dava algumas lições de moral no irmão, que torceu a cara e disse que não precisava da ajuda dela, muito menos de seus conselhos. Robin não suportava a presença do garoto, fato bem claro nas risadas debochadas e em seu revirar de olhos. O ódio era mútuo.
- Ei - chamou Yelena. - tudo bem?
Diana assentiu.
- Eu tô - ela sorriu, numa tentativa de parecer descolada. - Obrigada pela ajuda, mas... a gente dava conta.
Yelena riu da pose de falsa confiança de Diana e desviou o olhar. Ela procurava algo dentro da bolsa.
- Droga, eu devo estar uma bagunça... - murmurava nervosa. - O treino de hoje foi um pouco pesado e... cadê meu espelho...?
Era assim toda vez que elas tinham alguma interação. Yelena era conhecida por ser uma pessoa muito sociável e popular, mas no momento em que iniciavam uma conversa, evitava os olhos de Diana e aparentava ter vergonha pelo simples fato de estar próxima a ela. Não que fosse uma surpresa, as três integravam o melhor clã da escola, e Diana... era a Diana.
Um pequeno empurrão a tirou do lugar.
- Nós temos que ir, Didi. O trio do terror já nos atrasou demais e não podemos deixar a Roni esperando - Casper reclamava.
- Certo. Hum... até mais! - Diana acenou para as outras garotas. Ainda tentava esconder seu rosto abalado.
O local marcado não ficava muito longe de onde estavam. Apenas mais um minuto ou dois e estariam lá. Diana desejou ter mais tempo, não queria que sua professora a visse daquele jeito. As coisas que Megara dissera... abalaram sua cabeça mais do que gostaria de admitir. E para acrescentar mais um ingrediente nessa receita da desgraça, ela nem conseguiu proteger e defender seus amigos.
- Mas que merda! - gritou Casper. Ele puxava o próprio gorro para abafar o som. - Humilhados pelo clã da Val. De novo!
Agatha limpou a garganta e atirou-lhe um olhar de repreensão.
- Hã... sem ofensa, Di.
Diana deu de ombros. Nada poderia afetá-la mais naquele dia, estava anestesiada pela dor que já sofrera.
- O pior foi ter precisado da ajuda daquelas três - suspirou Agatha. Ela estava abalada tanto quanto Casper.
Diana sabia que Agatha tinha problemas com Yelena, problemas estes que ela nunca quis explicar. E apesar de também estar aborrecida com os acontecimentos, precisava ser um pouco otimista e tentar fazê-los se sentirem melhor.
- Qual é, gente? Vocês sabem que não há como ganhar todas as lutas! - afirmou Diana, um pouco mais animada.
- A gente sabe! - bufou Caz. - Mas perder todas? Há! Essa é a especialidade do Clã Amaldiçoado.

As Crônicas de WatherhouseWhere stories live. Discover now