32. ... depois morre

Começar do início
                                    

Consigo identificar algumas prateleiras atrás da cabeça de David e um conjunto de latas, tinta, talvez, empilhadas em um canto. Agora que David e eu estamos sentados, mal sobra espaço para nos mexermos, a estrutura inteira tem um espaço bem reduzido.

— Vou dar uma olhada em sua perna agora, tudo bem? — Ele continua sussurrando. Concordo com a cabeça. Mesmo quando estou sentada, a tonteira não passa.

Ele se senta apoiado nos calcanhares e coloca minha perna em seu colo. É só quando ele começa a levantar a perna da meia calça já meio rasgada que sinto como o tecido está molhado. Devo estar sangrando. Mordo o lábio e encosto a cabeça com força na parede, esperando que o toque dele seja doloroso, mas a sensação de suas mãos em minha pele, frias e fortes, de alguma forma suaviza tudo, passando pela dor como um eclipse encobrindo a lua. Quando a meia calça está enrolada até o joelho, ele me inclina levemente para ver minha panturrilha. Apoio um cotovelo no chão, sentindo o cômodo balançar. Devo estar sangrando muito. Ele exala rispidamente, um som rápido entre os dentes. Sinto que vou começar a enjoar com o cheiro e vomitar em cima dele.

— Está ruim? — Pergunto, com medo demais para olhar.

— Fique parada — Diz ele — Com sorte você vai curar, mas não pode perder mais sangue que isso.

Eu sei que está ruim, mas ele não confirma, e, nesse instante, sinto-me tão cheia de gratidão por ele e de ódio pelas pessoas lá fora, caçadores, primitivos, com seus dentes afiados e seus cassetetes pesados, que o ar me escapa e preciso fazer um esforço para respirar. David estende o braço para um canto do abrigo sem tirar minha perna de seu colo. Ele mexe em uma espécie de caixa, e trancas de metal se abrem. Um segundo depois ele está segurando uma garrafa sobre minha perna.

— Isto vai arder por um segundo — Diz ele. O líquido cai na pele, e o cheiro adstringente de álcool faz minhas narinas queimarem. Chamas parecem lamber minha perna, e eu quase grito. David estende uma das mãos, e, sem pensar, eu a aperto.

— O que é isso? — Forço as palavras a saírem entre os dentes.

— Álcool — Ele diz — Para evitar infecção.

— Como sabia que estava ali? — Pergunto.

— Já vim em festas nos Cavs — É a única coisa que ele responde, então prefiro não insistir — Como aquela em que você e Jake ganharam a batalha na água

Ele afasta a mão da minha, e percebo que eu estava apertando com muita força, mas não tenho energia para sentir vergonha ou medo: o local parece estar pulsando, a quase escuridão se tornando menos nítida.

— Droga — murmura David — Você tá sangrando muito.

— Não tá doendo tanto assim — Sussurro, o que é uma mentira. Mas ele está tão calmo, tão composto, que me faz querer agir com bravura também.

Tudo assumiu uma característica estranha e distante: os sons da correria e da gritaria lá fora se tornaram deformados e estranhos, como se estivessem sendo filtrados pela água, e David parece a quilômetros de distância. Começo a achar que posso estar sonhando ou prestes a desmaiar.

Então, decido que, definitivamente, estou sonhando, porque, enquanto assisto, David começa a puxar a camiseta pela cabeça. "O que está fazendo?" Quase grito. David se livra da camiseta e começa a rasgar o tecido em longas tiras, olhando, nervoso, para a porta e parando para escutar cada vez que o tecido faz rippp.

Agora não consigo desviar o olhar. O luar toca suas escápulas, que brilham sutilmente. Ele é magro, porém musculoso, e quando se move, consigo ver os contornos dos braços e do tórax.

Flor da meia-noiteOnde histórias criam vida. Descubra agora