Primavera

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Era um dia preguiçoso de tão quente. Tanto que as pessoas mal tinham ânimo para seus afazeres cotidianos. Os leques e assemelhados tentavam inutilmente estancar um calor a escorrer de todos os poros de um mundo que parecia ter congelado.

Era também um lago de difícil acesso, vazio de gente, cujas águas estavam especialmente límpidas. Não havia barulho algum, nem dos pássaros, nem das cigarras, nem mesmo do malemolente rastejar das cobras.

Não havia ninguém para testemunhar o gracioso pouso da fantástica criatura alada. Sim, era um dragão, um grande dragão branco. Elegante e esguio, tinha os olhos grandes da cor de labaredas e o corpo comprido que se alongava ainda mais por conta da extensão da cauda. Era revestido por impenetráveis escamas brancas que refletiam a luz de um jeito muito particular, fazendo com que, a depender da hora e da posição de quem vê, o branco adquirisse tonalidades as mais inusitadas.

Pousou o dragão às margens do lago a fim de saciar a sede e descansar um pouco. Era um de seus lugares preferidos, talvez pela quietude e pelo isolamento, talvez por qualquer outro motivo não sabido. Aprumou o corpo em um local que até já se conformava à sua silhueta, de onde se tinha uma belíssima visão da bucólica paisagem.

Quedou-se ali por um bom pedaço de tempo até sua natureza lhe comandar que voltasse às nuvens. Abriu então as grandes asas, apontou a cabeça à direção à qual sempre investia, agitou graciosamente a cauda e partiu rumo ao azul infinito particularmente claro e intenso naquele dia.

Não logrou, no entanto, alcançar a altura que desejava. Imediatamente após o primeiro impulso, cerca de vinte metros acima da superfície do lago, um reflexo de luz cegou-lhe momentaneamente a visão. Deu uma volta e pairou no ar, enquanto tentava localizar a origem do reflexo. Não demorou muito, quase nada na verdade, caçador que era, para visualizar a magnífica espada que há seiscentos anos dormia no fundo do espelho d'água.

Instantaneamente seu coração disparou e, como que por instinto, investiu contra a água límpida em direção à relíquia. Não precisou mergulhar de corpo inteiro. Embora grande, o lago era raso e o objeto estava a pouco mais de um metro e meio de profundidade. Agarrou-a com as patas traseiras e, tão veloz quanto o mergulho foi a arremetida. Subiu a toda velocidade, o mais alto que pôde, antes de sentir uma energia envolver-lhe todo o corpo e seus sentidos embotarem.

Não se lembraria de mais nada. Também não havia vivalma para testemunhar a explosão de energia que transformou uma espada esquecida pelo tempo em um outro dragão, de escamas avermelhadas, mas em todo o resto semelhante ao grande dragão branco com o qual ensaiava uma coreografia ancestral.

* * *

Acordou o ferreiro com um vazio no estômago maior que o de costume. Ainda estava escuro, mas o cheiro da manhã começava a querer invadir o ar. Esforçou-se para enxergar qualquer coisa que fosse, apertando os olhos o quanto pôde. Aos poucos conseguiu divisar mais do que o breu quase palpável daquele fim de madrugada. Olhou para o lado e percebeu que ela não estava.

Sentou-se, acariciou o espaço vazio a seu lado, sorriu. Uma fina faixa laranja despontava ao leste e o cheiro do desjejum que sua esposa lhe preparava todas as manhãs invadiu-lhe as narinas.

Levantou-se, lavou o rosto e imaginou como seria o dia, não muito diferente de todos os outros. Comeria, trabalharia em sua oficina a forjar ferramentas para os agricultores (recusava-se a forjar armas) e, nos momentos mais quentes do dia amaria mais ainda sua esposa, enquanto ela o refrescava com um leque e limpava o suor de seu corpo.

Uma espada para o reiOnde as histórias ganham vida. Descobre agora