I

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— Satoru, é hora de alimentar as galinhas!

— Já vou, meu bom pai.

— Ande logo com isso.

O garoto poderia reconhecer aquela voz mesmo em meio a uma multidão de desconhecidos; era um tom grave e imponente que contrastava com seu plácido e miúdo olhar asiático — muito embora este eclipsasse uma indecifrável aura envolta de antigas emoções ecoadas, feito uma barga de lapsos desbotados e retorcidos.

Agora, com um delicado sorriso, seguindo a ordem do patriarca, Satoru já mantinha-se descalço sobre a terra selvagem do ambiente, como sempre o faz nessas ocasiões; as mãos esguias comportavam um pequeno cesto de palha delicadamente trançado por mãos femininas e repleto de milho vibrando em seu interior.

Como por reflexo, seus olhos se fecharam ali mesmo: amava, antes de tudo, pressentir a tessitura da areia úmida preenchê-lo por dentro através de toda a sua inaudita história incorporando-se suavemente às plantas dos pés; todos os ciclos chuvosos que um dia beijaram a face daquele mesmo solo; todo o lastro invisível das ventanias e seus animalescos assovios que silenciosamente solidificaram formas; os fantásticos sonidos dos trovões durante noites lentamente derramadas no âmago empoçado de alguma melancolia; os torvelinhos rodopiando como infantes em algum canto de segredo risonho; também as lendas sanguíneas, histórias de avós enraizadas nas rugas de gerações ainda vivas em algum lugar no seio do inimaginável.

Todo esse universo não-linear se aglutinava em uma imensa esfera de vida viva nas profundezas de Satoru que ao avivar-se daquela suave eletricidade que percorria pelo corpo juvenil, já sabia o que fazer.

Firmou os lábios, formando um róseo bico semiaberto, dando vida a uma divertida cadeia de sons tão harmoniosos quanto os da fauna do sítio, magnetizando imediatamente uma confraria de galinhas ao seu redor:

— Devagar, minhas senhoras! Tem amor para todas! — dizia em bom tom, entre risos soluçantes, ao vê-las num debater-se frenético de asas acastanhadas, esmeraldinas, brancas ou pretas, disputando o espaço.

Sorria ainda mais ao contemplá-las "enchendo o bucho", como diria sua avó. Diferente dos familiares, jamais alguma vez pensara no destino escaldante de cada uma e tampouco interessava-se em seu valor nutricional: o paladar das suas emoções era outro. Dissecadas ou não em um panela num fogão à lenha, a chama inimitável de suas existências — e de cada outro ser dali — estaria sempre viva e dançando em sua alma. Por mais que seus familiares alguma vez ou outra protestassem pelo que tomavam por sua saúde e mesmo morando no campo desde a raiz do útero materno e, principalmente, desde o momento em que tomou consciência da vasta vida dentro de cada vida, nunca mais colocaria um pedaço de carne em sua boca.

Terminada as tarefas, entre a miscelânea canora de canários, sábias e outros pássaros em um réquiem junto ao desmaio do Sol aos braços do horizonte, ele também arrastou suas asas invisíveis para dentro do antigo recinto de madeira: um quadro memorial emoldurado no centro de toda aquela esbelta e vasta natureza.

                                                                                                **

— Satoru, tem certeza de que vai recusar este guisado delicioso com pequi?

Era a voz de Mizuki.

— Tenho sim, vó. A senhora sabe que o cheiro do pequi me provoca enjoos. E a carne (...) eu já expliquei antes. Obrigado mesmo assim.

— Mas até quando isso, menino? — Ouvia-se uma celeuma metálica de talheres contra a louça. — Olha só como seus bracinhos estão magricelas, seu rosto pálido e triste como de um anu-branco! Himari deveria te cuidar melhor.

A Origem da LuzWhere stories live. Discover now