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Girou a chave na fechadura, mais um alívio, mas não o derradeiro. Quando abriu a porta soltou um suspiro forte, como que querendo ser ouvida, de quando a gente tem alguma esperança de que todo mundo vai entender o nosso cansaço inigualável e, além de tamanho compadecimento, que alguém vai resolver alguns dos nossos problemas, talvez ao reconhecer nosso potencial e vocação para outra coisa que sabe-se lá qual é.
           Se livrou, enfim, do peso da bolsa e dos objetos nos bolsos. Foi tomar banho, não conseguiu na água fria, deixou na morna, quase quente, queria relaxar, o prazer da água assim era diferente da calma da fria, e suspirou mais nessa água.
           O dia tinha sido uma merda. Não era falta de dinheiro, era mais competente no trabalho do que o novo colega que conseguiu a vaga que toda a empresa tinha a certeza que seria dela, a qual ela almejava havia meses e pela qual tinha mostrado claro esforço e as devidas competências, e isso era opinião contundente e unânime. O cara agradou o chefe, nem eram conhecidos. Ninguém estava dizendo que ele era ruim, mas ninguém era melhor que ela, nem queria tanto quanto ela.
           Tinha dado uma desleixada na prática de yoga, agora era claramente o momento de praticar, costumava praticar especialmente para tentar amenizar as insônias ocasionais. No fundo, naturalmente, não queria acalmar a raiva, queria praticar ela, cessar ela como arma, arma da justiça. É claro que não podia, e mesmo verbalmente seria colocar coisas em risco, e perder mais coisas para o mau caratismo e antiética de alguém que, novamente, não pagaria por essa crueldade, isso estava abaixo da sua razão, do seu desprezo pela baixa ética de gente satisfeita em ser individualista. Não tão solidamente, mas com certa firmeza.
           Depois do banho não comeu, mas não estava faminta, trabalhava no que gostava, lá tinha café, cozinha, podia dar pausas, e ia embora de carro. Se sentou no chão, coluna reta, pernas cruzadas. Exercitava a recordação do que aprendera das poucas práticas, olhos abertos, observando sem foco o que tinha à sua frente. Respiração. Chefe, colega, raiva, frustração, injustiça. Não, o pensamento era a respiração, o foco era o corpo. Pensamentos podiam entrar, sair, passear, mas a atenção era toda do ar. Fechou os olhos, inspira, expira. Resignação. Mas isso não seria ceder ao conformismo? Se silenciar diante do injusto? Não, o objetivo é a calma, a paz interior, si próprio. Respira.
           Ar pra dentro, um… Ar pra fora, dois… Fernanda teve a impressão de ouvir um ruído leve, ali em qualquer cômodo mais próximo, ou no corredor. Abriu os olhos para nada, mas era quase automático. Só a luz atrás de si, a da cozinha, estava acesa, na sua frente só o escuro fracamente raiado da luz da cozinha. Perda de tempo, quase idiotice, era se distrair à toa e interromper a meditação, até porque no começo, antes do foco total na respiração, se aceita os sons que se ouve e as sensações que se sente, não era aguçar a audição e os sentidos, mas receber sem dar ênfase. Além de que morava sozinha, num apartamento no segundo andar e não era distraída, ou seja, nem gato nem gente chegando ou acordando nem coisas esquecidas abertas ou ligadas.
           Fechou os olhos. Ouvir, aceitar, sentir. Não dar atenção. E logo, foco total na respiração, ainda que se ouça música pela janela ou roçar inaudível de cortina acariciada pelo vento. Inspira, expira, o ar entrando, passando, saindo, o abdômen inflando e esvaziando. Embora pouco praticasse, achava, sim, reconfortante. Resignação sadia? O que importava era que estava lá e respirava, lera os livros dos mestres estoicos: a sua paz é você quem tem.
           Ouviu outro ruído quase igual, de certo que quase no mesmo lugar. Ruído leve, de qualquer coisa. Atenção na respiração, não abrir os olhos, não dar atenção. A calma já estava engendrada. Manter essa calma era um prazer, apesar de trabalhoso. Nada a se fazer além da respiração. Ruído. Sempre que dispersava a concentração mental, tinha que se lembrar de retornar à respiração. Um dia chegaria no nível de não se perturbar com ruídos nem de perder o foco tão facilmente. Mentira, não tinha certeza, mas sabia que fazia melhor que qualquer pessoa que tentasse a primeira vez, e as outras tantas primeiras que às vezes seguem, já passara disso, por insistência e desejo de se acalmar.
           Mas um último ruído foi mais alto. Fernanda pensou se deveria abrir os olhos, algo talvez estivesse errado, um descuido e uma casa pode pegar fogo. Abriu os olhos.
           No corredor escuro, na porta de um quarto escuro metade de uma silhueta em pé a olhava, mesmo que seus olhos e sua face estivessem sombreados, sem dúvida a figura a olhava.
           Ao compreender a imagem seu coração quase arrebentou, não conseguiu gritar, toda sua energia e instinto se proferiram em necessidade de movimento. Fernanda levantou correndo tão disparada quanto seu coração, correu para a porta de entrada que se abria de frente para um balcão da cozinha que logo se estendia numa meia parede. Quando sua mão alcançou a chave na fechadura e sua energia estava prestes a se dividir em grito, percebeu outra figura surgindo em passos rápidos e silenciosos de trás da meia parede. Quando se virou com o susto, mais uma vez em choque absurdo, esse outro homem silencioso, usando uma meia calça como máscara, num movimento contundente e rápido e quase banal golpeou com a mão o seu abdômen. Ele a olhou nos olhos, em silêncio, a faca apertada na mão e enfiada no abdômen. Imóvel, segurando com réstia de força com as duas mãos a mão do seu assassino, Fernanda viu a outra figura avançar de repente na mesma pressa silenciosa que o segundo homem, e no mesmo golpe rápido e contundente atravessou outra faca pelo seu pescoço, a ponta saiu pelo outro lado. Os braços de Fernanda penderam ao lado do corpo. Os assassinos retiraram as facas, num movimento um pouco menos ágil, o corpo caiu em banho de sangue.

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