Go to insane

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O pequeno híbrido de dragão descia novamente até o escritório de seu pai pela quinta vez na mesma hora. Ele estava há dias tentando convencer o moreno a sair pelo menos para pegar alguns raios solares da manhã, conversar com as pessoas, jogar bola ou qualquer coisa que fizesse com que o rosto do pai voltasse a ter cor. A situação era péssima, as olheiras costumeiras eram muito aparentes, o café era feito com mais frequência e, na favela, faziam dias que somente duas vozes eram ouvidas. Foi só então que perceberam que a recusa do detetive em sair de casa não era uma simples obsessão por enigmas. O rapaz parecia não dormir há dias e sua despensa não havia sido reposta em momento algum.

O pequeno ovo era o único que ainda tinha atenção sem ter que praticamente implorar, então aproveitava para tentar distraí-lo constantemente.

"BOM DIA, PAI! 😄" o barulho da placa azul sendo posta fez com que o detetive tenha um leve sobressalto.

— Bom dia, filhão! Como você está? - ri acariciando a cabeça do filho.

"Muito bem, mas ficaria melhor se fosse você a fazer minhas missões hoje. 😊"

— Hum, não se... - iria completar a desculpa para não fazê-las, mas observou os trejeitos tristes do filho, logo mudando de ideia. - Claro! Vamos ver o que temos aqui.

No telecomunicador, podia-se ler:

- De peixe para o ovo
- Faça uma pintura da família
- Tire uma foto do bebê com a pintura e deixe na escola
- Cante para o bebê dormir

— Bem, no dia de hoje terei a honra de ser seu chef pessoal - disse com um péssimo sotaque francês - farei para o senhor o melhor peixe que já comeu!

Animado que seu "plano" havia dado certo, o pequeno ser de camisa do Brasil saltitava atrás de seu pai enquanto saíam do local.

— Eu tenho peixe aqui, gosta de salmão? - em resposta, a cabeça de cogumelo acena positivamente. - Marravilha, Richarlyson, terremos um lindo prrato de salmon parra sua degustacion~ - Enquanto fazia sua interpretação do século, ria e preparava uma mesa de piquenique no telhado de sua casa para que tivessem sua refeição.

Um ser perverso de pelugem branca observava de longe a bela interação, sempre a espreita, pensando em quando seria a melhor hora de agir. Mas, por agora, somente um aviso seria suficiente, não é? Alguns barulhos altos soaram pelo recinto, os olhos azul marinho do adulto já piscavam pelo estresse, mas ele tentava ao máximo focar em sua criança.

Seu pai não era o melhor cozinheiro do mundo, mas para o dragão, aquela sempre seria a melhor comida. Nada que um pouco de atenção, uma brincadeira e afeto não transformassem no maior banquete já visto.

Deliciou-se com o prato, agradecendo internamente pela calma que o mais velho manteve perante os ruídos desconhecidos.

"Estava delicioso! E agora?!"

— Agora quero ver suas grandíssimas habilidades artísticas, Richas. Pinta nossa família? - Novamente, a vaquinha acenava que sim. Celbitt achava aquele "chapéu" extremamente fofo e único.

Sentaram-se em frente ao lago e curtiram um momento de silêncio enquanto a arte era feita. O garotinho era observado com esmero e admiração. Se não estivesse tão concentrado, sentiria o amor palpável expresso naquele olhar. Mesmo à beira de um surto, sempre faria tudo por seu filho. Ele sempre seria seu bem mais precioso.

Viajou em pensamentos, acompanhando o doce som da água batendo contra a margem. Talvez, só talvez, as coisas pudessem melhorar a partir dali. O sol brilhava agradavelmente naquele dia, a grama verde balançava com a leve brisa, os poucos pássaros que por lá passavam cantavam e deixavam o local. O Cristo não finalizado fazia sombra, e as canas de açúcar pouco distantes dali acompanhavam a dança do vento.

Celbitt achava que era o único a observar, mas bastou um único momento de distração para que um latino falante passasse pelas redondezas e se deparasse com a imagem, logo registrando-a e pensando se a daria de presente ou a manteria para si.

A pintura estava pronta, e era simplesmente incrível como a essência de cada integrante daquela família tinha sido captada nos lindos traços com resquícios de infantilidade. Maravilhado, cumpriu o próximo passo, tirando uma foto e sendo acompanhado até a escola do local, onde a deixou na pasta de tarefas de casa.

Agora, já retornavam para sua comunidade com o objetivo de seguir o dia, talvez fazer alguma outra coisa juntos e depois dar boa noite. Porém, as coisas nunca sairiam como o planejado.

Atravessaram a porta e subiram a rampa até o telhado novamente. Sentaram-se à mesa para conversar um pouco, mas foram interrompidos pelo estridente som de uma serra elétrica.

Desespero, horror, angústia, tudo isso tomava o corpo de músculos rígidos. O pânico de reviver os mesmos minutos desesperadores, a correria, o corredor. O cheiro de mofo chegava ao seu olfato, cada músculo se contraía violentamente, travado em uma posição de agonia eterna. Seu coração, já martirizado pelo terror, disparava furiosamente, batendo tão intensamente que tornava-se ensurdecedor.

O ar se esvai dos pulmões e respirar se torna um desafio. Sentia-se sufocando, procurando desesperadamente por ar, sem conseguir produzir nenhum som. As imagens vinham como tiros: sangue, espinhos, correr, correr, correr. Ele não poderia escapar.

Lentamente, virou-se e viu o dono de todo seu tormento encarando-o com um sorriso estonteante. E ela voltou, a sensação de impotência o assolou, colocando-o novamente naquele ciclo sem fim que vivenciava todas as noites em que não aguentava e caía de sono. O som agoniante da serra elétrica penetrou sua alma, rasgando tudo o que lhe restava de sanidade. Sentia como se cada célula do seu corpo perdesse a razão de existir.

Naquele momento, o mundo ao seu redor parecia desfocado, periférico. A realidade se dissolveu em um nevoeiro de medo, enquanto sua mente lutava para processar a terrível realidade que enfrentava. Cada vez que o som infernal invadia seus ouvidos, uma descarga elétrica de terror percorria todo o seu ser, como se estivesse sendo submetido novamente à tortura impiedosa.

Seu corpo tremia, o suor era frio, os olhos tremelicavam e a dor o dominava, tornando-se tão real quanto no dia. Sua cabeça doía intensamente, e já não tinha mais controle sobre si.

Já não era dono de sua consciência, sentia aos poucos sua visão sumir e o corpo amolecer, pensou no filho no último momento de consciência que teve a oportunidade de ter, pedia internamente desculpas a ele por não ser forte o suficiente pra aguentar aquilo, pensou que era o seu fim.

Mas seu corpo não atingiu o chão.

"Cicatrizes" - Guapoduo (QSMP)Where stories live. Discover now