O lobo nas ruinas

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 Não havia vida ali.

Ao menos não até a chegada da garota.

Ela caminhava pelo corredor do templo coberta dos pés à cabeça por um manto negro. Em sua mão direita uma tocha, na esquerda uma lança de seu tamanho, com haste de madeira e ponta de metal. As mechas de cabelo que escapuliram do capuz da moça tinham o mesmo tom esbranquiçado das paredes de pedra-marfim, paredes essas que — entre musgos e raízes — revelavam gravuras de um velho ritual: uma multidão entregando sacrifícios aos antigos deuses daquela terra. No entanto, agora não havia mais vida ali, nem sacrifícios. Apenas propósitos roubados e morte impregnando o ar.

Ela respirou fundo, observando o vapor espesso sair de seu fôlego. Estava ficando mais frio e ela sabia que não era um frio natural. Olhou de soslaio para a parede da direita, observando a imagem de um grande lobo circundando uma criança amarrada.

Sentiu um arrepio percorrer toda sua pele.

Alguns passos a mais e notou que suas botas começaram a pisar em um líquido pegajoso. Parou por um instante, olhando para baixo e percebendo o aspecto barrento do líquido. Duas fungadas e sentiu o cheiro de enxofre invadir-lhe os pulmões, amargando-lhe a língua e lhe fazendo lacrimejar.

Estava perto.

Continuou.

Aos poucos, o fogo da tocha deixou de ser a única fonte de luz. Estava chegando ao fim do corredor, onde o céu ainda trazia alguma claridade, apesar de estar nublado. Sem hesitar, largou a tocha no chão, vendo o líquido se comportar de forma peculiar: como se tivesse vida e consciência própria, a nojeira barrenta se afastou da luz do fogo, formando um círculo borbulhante ao redor da tocha.

Não havia vida naquele lugar.

Mais alerta, a garota levou a mão direita até uma pequena bolsa de pano pendurada em seu cinto, logo ao lado de uma espada embainhada em couro. Alcançando a bolsa, pegou duas pequenas esferas de metal com pavis, e então saiu do corredor. Saindo, viu o teto subir e se estender por vários metros adiante, até chegar numa grande abertura circular por onde entrava a luz vinda do céu, formando um grande claustro redondo sustentado por pilares de pedra. Os pilares, tomados por raízes retorcidas, faziam o lugar parecer uma floresta sombria.

"Você não deveria estar aqui!"

A voz veio como um pensamento, furando-lhe os ouvidos.

"Fuja antes que acabe igual a eles!"

"Pensa mesmo que aqueles camponeses tem dinheiro para lhe pagar?"

"Sua única recompensa aqui será a morte!"

A garota ignorou.

Caminhou lentamente até a clareira, onde o piso deixava de ser pedra musgosa e se tornava areia branca. Alcançando o centro, respirou fundo mais uma vez, e abaixou a lança, olhando para a escuridão entre os pilares de pedra.

"Saia! Verme!"

"Saia enquanto ainda tem uma cabeça presa aos ombros!"

"Meretriz!"

"Assassina!"

"Saia!"

— Eu não vou sair! — bradou a garota. — Apareça, monstro!

As vozes cessaram.

E um rosnado grave ecoou pela pedra branca, como se vindo de todas as direções e de nenhuma ao mesmo tempo. Foi diante da moça, no entanto, que o alvo apareceu: primeiro, os olhos amarelos brilhando na escuridão, logo acima de dentes afiados que expeliam o vapor de seu respirar, no que parecia mais um focinho do que uma boca. Depois, surgiram os membros longos que terminavam em garras e as costas curvadas, seu corpo coberto por pêlos cor de sangue.

A Espada do Eterno (Degustação)Where stories live. Discover now