Um fim de semana de mãe e filha

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Eu sentia como se minha vida tivesse sido cortada. Tudo tinha perdido sentido pra mim naquele dia em que sofri um acidente no haras, quando um cavalo em que eu estava montada se assustou e eu caí no chão, batendo a nuca numa pedra. Meus olhos se fecharam, e quando os abri, estava numa cama de hospital, e tetraplégica por causa de duas vértebras cervicais que viraram cacos.

Fazia dois meses que eu estava presa à uma cadeira de rodas. Samara, minha cuidadora, me deixou virada para a parede do meu quarto que ficava voltada para o Oriente. Orei em silêncio ao ícone de Jesus Cristo, pedindo que não me deixasse desanimar. Como neta de sírio-libaneses, eu era cristã ortodoxa e frequentava todos os domingos a Catedral Metropolitana Ortodoxa de São Paulo, na Vila Mariana.

Olhei para o quadro, pintado pelo Abouna Nicolau. Reparei nos olhos de Jesus.

— Por que eu? — perguntei, mesmo sabendo que ele não ia responder.

Ninguém tinha resposta.

Ninguém sabia por que uma garota de apenas dezessete anos, uma ginasta olímpica da seleção brasileira, campeã em várias competições e imbatível na trave e no solo, de um dia pro outro teve seu sonho interrompido e agora estava sentada numa cadeira de rodas, imóvel do pescoço para baixo.

— Najla?

Minha mãe andou até minha frente, se agachou, tirou uma mecha de cabelo rebelde que caiu diante dos meus olhos e me deu um sorriso. Um sorriso carinhoso, cheio de cumplicidade. Sorri de volta.

— Fiz sopa. Quer comer? — ela segurou minha mão imóvel enquanto perguntou.

— Quero — respondi.

Ela se levantou e empurrou minha cadeira de rodas até a cozinha. Arrastando uma cadeira para perto de mim, ela pôs um guardanapo no meu colo, sentou-se e depositou uma colherada de sopa de carne na minha boca. Depois outra. E outra. Até eu ficar saciada.

— Estava deliciosa — meu elogio a fez sorrir ainda mais.

Era ótimo vê-la sorrindo. Quando sofri o acidente, ela ficou muito abalada e se culpou durante semanas por não ter impedido que eu viajasse para Ibiúna com meus primos. Mas eu disse que não era culpa dela. Ninguém teve culpa. E o pior havia passado. Eu já havia atravessado os estágios da revolta e da negação, e de um jeito ou de outro, minha vida precisava seguir. Sem ginástica, sem poder andar, sem poder mexer meus braços, e tendo que aceitar os cuidados das pessoas, tendo que aceitar que uma mulher desconhecida me desse banho e trocasse minhas fraldas.

Minha mãe, Laila Saad, fôra uma ginasta olímpica talentosíssima; no quarto dela havia medalhas dos torneios que vencera na adolescência, e em seu álbum de fotos, inúmeros registros atestavam que ela fôra uma garota feliz, alegre, cheia de vida. Nós duas éramos parecidas. Tínhamos cabelo louro-escuros e liso, e olhos negros, e a mesma pintinha abaixo do olho esquerdo.

Ela sustentou meu olhar no seu, pôs uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha, acariciou meu rosto. Uma sensação de conforto me invadiu. Era impossível eu não me sentir bem quando ela me olhava com aqueles olhos tão cheios de amor, como a do ícone da Mãe de Deus.

Sempre fôra assim. Nós duas, parceiras, amigas, cúmplices em tudo. Meu pai faleceu quando eu tinha apenas quatro anos e ela desempenhou com alegria o papel da mãe amorosa e do pai disciplinador.

Queria ser capaz, naquele momento, de pelo menos dar um abraço nela. A impossibilidade desse gesto tão simples me deu uma pontada de tristeza, e abaixei a cabeça, tentando ocultá-la.

— Não gosto de te ver assim — ela segurou meus ombros.

— Era pra você estar na academia agora — lembrei-a. Uma pequenina lágrima inundou meus olhos.

Contos para se emocionar: porque amor de mãe é infinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora