09. Revelações (parte 2)

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- Que porra é essa? - gritou a mulher, após escancarar a porta liberta dos ferrolhos.

Ajeitou a alça do tapa olho, sustentando-a fragilmente sobre o enorme calombo que sempre a assombrou de volta através de seu reflexo. Ocultada a concavidade do globo ausente, empunhou firmemente o aro de propulsão da cadeira de rodas. Moveu-se. Foi apenas o suficiente para observar o corredor, refletindo o cenário confuso em sua única retina.

Sobre o piso, os vermelhos, venoso e arterial, se encontravam numa pintura disforme. Quase aludia a interpretação de uma obra surreal, mas não por um conjunto distorcido e contemplativo de leituras da realidade. Sim pela inevitabilidade do espanto, causado pelo confronto entre o estado repentino e inesperado que tomou o local. Uma aparente calamidade se instalou, de características impossíveis de se formarem sem fatos mais demorados e ruidosos.

Sussurrou o nome do motorista, sem entender como ele se foi tão rapidamente do corredor. Junto, sumiram os demais interlocutores.

Ela se certificou, consultando a memória, que entre o abrir do último trinco e o giro da maçaneta ainda havia aquela voz familiar vindo de fora.

- Cadê você...? Desgraçado...

A respiração tentou escapar, como se fosse o efeito de pulmões com vida própria. Seu corpo personificou-se em um ser atemorizado, por si só, diante da possibilidade de expor-se a qualquer coisa inexplicável que pudesse ter ocorrido.

Sobre as paredes e o teto, borrifos rubros se estendiam, revelando a impressão de um spray aleatório. Definitivamente, uma seiva escarlate tomou posse do ambiente.

O cheiro denunciava a presença da morte, mas isso só poderia ser reconhecido por quem já vivenciou determinadas experiências, empurradas através do sorteio da vida que distribuiu seus revezes. Esse era justamente seu caso.

Um estranho fragmento se descolou da fraca lâmpada e caiu. Já no chão, foi observado. Aparentou se tratar de um pequeno pedaço de carne. Deu-se conta de que havia outras centenas de diminutas partes semelhantes, espalhadas por qualquer superfície visível.

A luz elétrica, anêmica pela falta de manutenção, irradiou-se rubra e intermitente, definhando através das finas camadas dos globos de vidro, quase opacos de esqualidez.

Seu sussurro aparentou ter sido respondido, com certo atraso, por uma vociferação intensa na origem, mas fraca na percepção a partir de onde estava. Veio das escadas, situadas na outra extremidade do longo corredor. A voz era familiar, contudo, não se tratava do visitante indesejável que bateu em sua porta, mas sim de um dos temidos garotos que atormentava a vizinhança.

Propulsionou para trás. As rodas derraparam levemente sobre o líquido vermelho. Deu um tranco com os braços, segurando o aro. Venceu os milímetros do degrau e a cadeira a conduziu de volta para dentro.

Ofegante, ainda com a porta aberta, hesitou segurando a maçaneta. Notou que, no tempo em que a porta esteve aberta, puxada para dentro, o sangue que nela estava acabou escorrendo, pintando seu chão de entrada.

- Que bosta...

Deteve-se. Fixou o olhar para cima, na direção da origem da sujeira que escorria sobre a superfície externa da porta, ainda aberta. Notou algo destacado. Uma esfera esbranquiçada escorria lentamente. Soltou a maçaneta, num reflexo, o que tremeu a madeira e fez o objeto descolar-se, cedendo à gravidade. Reconheceu na esfera, uma parte humana.

- Que por...

Tratava-se de um olho. Como se o pedaço inanimado carregasse a alma de seu antigo hospedeiro, o encarou de volta. Ela o investigou com o interesse dedicado de quem possui apenas um dos olhos, tratando sempre os olhares dos outros com certa obsessão, a qual injeta detalhes peculiares em sua memória a cada contato. Após examinar, obteve ciência de a quem pertencia o tom esverdeado da íris. Deu-se conta de que, ao menos, um dos rapazes que atormentava a vizinhança estava espalhado por toda parte.

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⏰ Última atualização: May 05, 2023 ⏰

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