Klara e o Sol - Kazuo Ishiguro

11 0 0
                                    


O livro "Klara e o Sol" poderia ser lido de várias formas (prova disso é a multiplicidade de finais possíveis de interpretar), mas a leitura mais leal às intenções de Ishiguro, a que se aproxima com maior exatidão à sua essência, talvez seja aquel...

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.

O livro "Klara e o Sol" poderia ser lido de várias formas (prova disso é a multiplicidade de finais possíveis de interpretar), mas a leitura mais leal às intenções de Ishiguro, a que se aproxima com maior exatidão à sua essência, talvez seja aquela que entende a obra como uma alegoria. Uma alegoria que nos remete a uma questão ontológica: O que nos torna seres humanos? O que nos diferenciaria de uma máquina capaz de reproduzir percepções subjetivas, condutas e emoções próprias do ser humano da maneira mais exata? Saberá a máquina sentir? Decerto, poderá ela perceber as emoções através de uma minuciosa observação de seus sinais, no entanto, perceber todas as tonalidades de uma emoção, significa sentir essa emoção? A "gentileza" à qual Klara frequentemente se refere, a mesma "gentileza" que ela descreve perceber durante um abraço maternal, é amor? Por mais que Klara acredite ter muitos sentimentos, produto de sua apurada habilidade de observação, por muito que ela consiga categorizá-los e tê-los a disposição, ela é capaz de amar verdadeiramente? Colocar-se no lugar do outro é suficiente? Arriscaria dizer - e aqui o risco que incorro é cair numa reflexão piegas - que o ponto de inflexão na mensagem de Ishiguro, e o que nos diferencia enquanto seres humanos de Klara, é a capacidade de amar, com todas as imperfeições que isso implica e todos os erros a que isso conduz. Mas seríamos capazes de amar apesar de saber que esse amor não é sequer sentido como é o caso de uma máquina?

O enredo de "Klara e o Sol" se desenvolve em um contexto indeterminado. Poderia facilmente transcorrer em qualquer tempo futuro não muito distante e em qualquer metrópole do planeta. Como bem pontuou Aparecida Vilaça em sua resenha sobre o livro, trata-se de uma realidade próxima, porém sutilmente deslocada. Já quem narra a história, em primeira pessoa, como quem resgata as memórias de um passado, é Klara. Klara é um AA. Os AAs são dispositivos robóticos de características muito similares aos dos seres humanos projetados para acompanhar e tutorear crianças e jovens na sua fase de desenvolvimento. A visão de Klara e suas percepções narradas estão limitadas, portanto, a sua visão primária que tem do mundo sensível e dos seres humanos. Aliás, a sua forma de ver o mundo está frequentemente compatibilizada em cubos e caixas. Sua condição inicial no interior de uma loja e sua inteligência em desenvolvimento limita essa perspectiva. No entanto, Klara tem uma habilidade que a destaca dos demais AAs, ela é ávida por aprender, observa atentamente o entorno bem como o comportamento dos demais, nutrida sempre de uma crescente curiosidade.

Ishiguro se aproveita, portanto, dessa natureza ingênua de Klara para armar uma estratégia de narrativa que se próxima ao naíf. De uma forma ingênua e espontânea a história que nos narra Klara revela a trama, mas também as modulações dos personagens, na medida em que ela mesma desvenda seus mistérios. O suspense no final de cada parte é a garantia de mais revelações na leitura subsequente. O resultado é o desejo de avançar em direção ao desfecho da trama sem pausas, surpreendidos de forma progressiva, presos no entreamado dos conflitos.

Apesar de, o conflito central da obra, parecer evidente, muitos canais se abrem em um terreno profícuo de analises. O eixo central da narrativa se desenvolve no conflito que Klara tem para cumprir a missão pela qual ela foi criada, proteger, a todo custo, a criança que é sua proprietária. Mais tarde Klara descobre outro propósito de uso, servir de continuidade a essa criança. A saga de Klara começa, portanto, na loja onde ela e outros AAs estão expostos para a comercialização. Nesse começo, a descrição da narrativa está limitada pela visão que Klara tem do interior da loja. Já o mundo exterior se apresenta fragmentado pela vitrine onde por momentos ela está exposta. Quem compra Klara é a mãe de Josie. Josie é uma criança de 12 que padece de uma enfermidade desconhecida, ao menos não fica claro a sua causa até certo ponto da trama. Paralelo a isso, o personagem de Ricky faz o contraponto com os demais personagens humanos, é um garoto sensível, simples e empático. Ele e Josie têm um plano desde a mais precoce infância, ao se tornarem adultos se casariam e formariam uma família. Ricky não pertence à casta dos demais meninos e meninas do círculo social de Josie, pois ele não é "elevado". Há uma marca visível reconhecida de imediato pelos personagens, que, entretanto, permanece, durante todo o livro, oculta do leitor. Uma característica que supõe uma alteração genética, tornando certas crianças "elevadas", com melhorias de aprendizagem e outras vantagens em suas habilidades. Porém, esse parece ser um procedimento de custo elevado, não disponível a todos, alheio a Ricky por exemplo. De qualquer forma ser "elevado" pode trazer consigo sérios efeitos colaterais.

É uma tarefa difícil resenhar sobre "Klara e o Sol" sem analisar o seu final, e se agrava se quisermos fazê-lo evitando spoilers. Porém, é possível dizer que a relação de Klara com o Sol, durante todo o livro, constrói o final. Não com o intuito de preparar um terreno para seu desfecho senão para surpreender-nos, deixar-nos ao fechar o livro com uma cadeia de interrogações e uma série de ideias perturbadoras. Afinal, uma máquina é capaz de compreender os fenômenos supraterrestres e tem melhor apurado o seu sistema de crenças do que nós os seres humanos? A esperança de Klara ao longo da história, aparentemente apoiada em uma fé ingênua, de quem está condenada a uma perspectiva limitada da realidade, é capaz de compreender a existência de tudo, suas causas e consequências, com maior sabedoria que os melhores pensadores e religiosos de todos os tempos? Por que seria mais verdadeira a onipresença e a onipotência de um Deus cuja evidencia de existência é nula, do que o Sol, que nutre Klara e, de alguma maneira, nos nutre? De fato outras civilizações idolatravam o Sol como a um Deus, mas Klara é uma máquina, daí todo o paradoxo do livro.

Os monólogos que Klara mantém com o Sol, remetem a algumas passagens de Zaratustra, de Nietzsche, principalmente nas primeiras linhas do livro quando o "astro superabundante" é a única testemunha do inicio de sua epopeia. Zaratustra, quem viveu em solidão no alto de uma montanha por dez anos, e por dez anos não sentiu fadiga, dirige-se ao Sol para falar-lhe sobre seu declínio rumo aos homens. Compara dessa forma a força do Sol, com sua própria vontade de potencia, com a necessidade de transbordar seu conhecimento, derramando generosamente, assim como os raios do Sol, sua sabedoria trasbordante aos homens. Também Mishima recria no conto "Los sables" um monólogo intenso e cheio de significados poéticos entre Jiro Kokubo e o Sol. Só que no caso do personagem de Mishima, Jiro desafia o Sol com um olhar que o enfrenta e, por uma questão de honra, recusa-se ser ofuscado.

Ao trazer "Klara e o Sol" para compor o projeto "Letras Literariás Japonesas" passei por instantes de hesitação, pois como é sabido, Ishiguro apesar de ter nascido no Japão, migrou ainda muito jovem à Inglaterra onde cresceu como indivíduo, mas também como escritor. A questão que se apresentava, então, era: Ishiguro pertence aos cânones da literatura japonesa? É possível colocá-lo ao lado de Nagai Kafu ou Haruki Murakami, por exemplo? Para ser honesto, não disponho de elementos, nem tampouco argumentos objetivos que possam responder a essa pergunta. Existe, no entanto, algo no estilo de escrita de Ishiguro que me leva a responder: sim, "Klara e o Sol" é uma obra cume da literatura japonesa. Ousaria ainda estabelecer aqui um paralelo com outra expressão artística essencialmente japonesa: o mangá e o animé. Ninguém, diante de um mangá ou um animé, pergunta qual a origem dessa arte. Há uma identidade visual, um traço estético que ultrapassa qualquer descrição racional do por que um mangá ou um animé são sem dúvida o que são. O mesmo acontece com boa parte das obras literárias japonesas modernas cuja estética imprime uma marca inconfundível, que vai muito além de explicações ou críticas deliberadas. O mesmo acontece com Ishiguro. Penso, inclusive que não seria inapropriado dizer que o argumento de "Klara e o Sol" poderia ter sido levado para o interior dos quadrinhos de um mangá ou às telas animadas de um animé, porque pertencem, apesar da diferença de linguagens, à mesma potência artística.

Para finalizar resgato uma frase proferida por Klara, em seu apelo final, ao Sol: "O que crianças sabem sobre o amor verdadeiro"? Referindo-se aqui ao amor que Ricky tem por Josie. Klara condensa aqui, em uma singela frase – mas com a profundidade que Klara costuma ter - o que seria talvez a essência do livro: O que sabemos, nós, sobre o amor verdadeiro?

Letras Literárias JaponesasWhere stories live. Discover now