Nove

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Bonito podia ser qualquer coisa, menos algo "bonito" naquela tarde. O céu estava completamente pintado de vermelho, como se uma divindade maldosa com espírito de Van Gogh tivesse decidido pincelar tons rubros pelos céus e nuvens. O ar parecia carregado de uma energia negativa, e isso era quase visível, como se uma névoa "cobrisse-não-cobrindo" o ambiente.

Dona Odete e Jonas andavam lado a lado pela rua de suas casas. A velha tinha uma mordida enorme no ombro, enquanto o jornalista tinha três espalhadas pelo braço direito e uma no tornozelo esquerdo, o que fazia com que o homem mancasse levemente. Nenhum dos dois ousava dizer qualquer coisa que fosse, estavam exaustos e abatidos após enfrentarem uma meia dúzia de zumbis adolescentes ao caminho de casa.

Pararam em frente a casa de Odete, e os dois se olharam com a mesma expressão em seus rostos — uma mistura que dizia "eu não acredito que ainda tamo juntos nessa" com " que tamo juntos nessa, vamos né?". A senhora abriu o portãozinho de ferro e abriu passagem para que Jonas entrasse na frente, e depois ela também adentrou. Caminharam lentos e mancos até a entrada da casa, e dona Odete demorou quase um longo minuto pra encontrar a chave certa.

— Quer café? — Dona Odete quebrou o silêncio, uma vez que ambos estavam dentro da casa.

— Aceito sim.

— Vou passar. — Odete fixou o olhar para as feridas de Jonas, e suspirou fundo — Só seguir ali ó — apontou com o narigão para frente — que você chega no banheiro. Vai se limpar enquanto isso...

— É uma boa ideia. — Jonas soltou um leve e simpático sorriso pra velha, caminhando na direção que ela apontara.

Dona Odete, por sua vez, foi pra cozinha, botou água pra ferver, e encheu o coador com cinco colheronas de pó de café. Viu, sobre a bancada da pia, o saco de pães e meia broa numa vasilha, e agradeceu aos céus por sempre contar com o instinto de velha de sempre ter em casa algo para um lanche.

Conferiu os pães, estavam dormidos, mas dava para fazer torradas com azeite e orégano, então enquanto a água fervia a velha tomou um tempo para prepará-las.

Percebeu ter terminado tudo a tempo, fechando a garrafa térmica no momento em que o Jonas encostava-se no arco da porta da cozinha, já limpo.

— A senhora também precisa se limpar... — Ele falou, apontando com o queixo para a ferida aberta no ombro da velha.

Vamo comer primeiro. — Dona Odete botou tudo na sua bandeja, caminhando da cozinha para a sala de estar com uma naturalidade invejável — Como se diz, saco vazio não para em pé, ?

Os dois foram para a sala de estar, e Jonas sentou-se justamente no sofázinho de dois lugares que dava vista para sua casa, e ele percebeu isso — mas optou por não falar nada [e dona Odete percebeu que Jonas havia percebido, e ela também escolheu o silêncio].

Encheram seus copos de café, partiram cada um uma fatia da broa, e colocaram também algumas torradas nos pratinhos minúsculos de porcelana.

— Essa porcelana é a boa — Odete falou num tom bastante descontraído, quebrando qualquer expectativa por parte de Jonas.

— Usa só para ocasiões especiais? — Jonas não pôde evitar o sorriso em seu rosto.

— Sim. — ela respondeu com um risinho meio maroto, e isso abriu ainda mais o sorriso no rosto do jornalista — Mas a ocasião especial é que amanhã eu posso tá morta, não sua presença. — o sorrisão de Jonas desapareceu no mesmo instante, e dona Odete insistiu em manter sua expressão marota e levemente maldosa em seu rosto. — Tô brincando, — ela sorriu — muito obrigado por você ter salvado minha vida uma dez mil vezes nessas últimas doze horas. A porcelana é por isso.

P.P.P. - Projeto: Pode piorar?Where stories live. Discover now