Dois

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De vinte meias na gaveta, nenhum par combinava. A menina bufou, nervosa, conferiu algumas combinações possíveis e escolheu entre duas meias completamente diferentes — no pé direito de listrinhas rosa, azul, amarelo e preto; no esquerdo um laranja bem chamativo com um desenho do C3P0 de Star Wars de cada lado. Amarrou a blusa xadrez na cintura, vestiu o moletom preto sobre o uniforme da escola e botou o all-star vermelho encardido nos pés.

Estava pronta, só faltava a maquiagem. Sentou no puff de quadrinhos em frente ao espelho pendurado na parede de seu quarto e procurou pelo delineador rosa em sua caixinha de sapatos.

Fez um coraçãozinho de cada lado, abaixo dos olhos, combinando o tom com o brilho rosa na boca fina. Sorriu para si mesma, e passou alguns segundos sofridos ao reparar com pesar os dentes inferiores desalinhados, e os dois dentes da frente levemente separados. Esforçando para tirar o seu foco dos dentes, voltou a futricar na caixa, puxando o lápis de olhos e fazendo os olhinhos repuxados. Deu por satisfeita com o trabalho feito, no momento em que seu celular começou a tocar — 11 e 45. Era hora de ir.

Saiu do seu quarto as pressas, já dando de cara com sua mãe sentada no sofá encostado na parede da janela com o crochê na mão. Os dedos ferozes da mulher movimentavam a agulha num vai e vem constante, de modo tão automático que ela sequer desviava o olhar da televisão, acompanhando o programa matinal com aquele sentimento de companheirismo e amizade de toda uma vida. Acenava, sozinha, concordando com a apresentadora discursando algo super-motivacional para público e plateia.

— Bença, mãe. — a menina acenou com a cabeça, indo pra estante da TV e tirando do potinho de galinha dois e cinquenta.

— Deus abençoa, — a mulher não desviou o olhar da TV, nem parou os movimentos de dedos com seu crochê — toma cuidado e volta direto pra cá no fim da aula, tá bom?

A menina fez sinal de joinha, mas a mãe obviamente não viu. Ela seguiu para a saída, e a mãe parou os movimentos de dedo, desviando o olhar da televisão para a filha:

— Pra casa, tá bom, Jéssica? — Tinha o tom repreensível.

— Tá bom, mãe! — Jéssica precisou se esforçar para não revirar os olhos na cara de sua mãe, e se retirou.

°•○●¤

Scarlet era muito bonita. E nem se esforçava para isso. Tudo o que fazia era botar um batom leve nos lábios e fazer leves ondinhas em algumas  mechas de seu longo cabelo cor de bronze. Não usava roupas caras, nem muito elaboradas; o uniforme azul bebê e branco lhe caía bem, e o shorts jeans tinha uns desenhos florais no mesmo tom de céu.

Usava meias novas, brancas como o tênis. Dois dias atrás, havia ganhado novos pares da mãe, após um longo discurso de que ela precisava cuidar mais de suas coisas e deixar de ser desleixada — caso contrário, jamais se casaria. E Deus a livrasse, uma coisa que jamais queria para sua vida era aguentar um homem que a subjulgasse por motivos idiotas e banais como perdas de objetos. Queria não ser distraída para si própria, não para poder se casar.

Estava lá, no ponto de ônibus acompanhada por mais uma meia dúzia de outros adolescentes também com o mesmo destino: a escola. Digitava no seu celular trechos aleatórios, e postava um por um no Twitter.

Colé, Scarlet! — Ouviu Diogo, um colega de sala, cumprimentando-a ao chegar.

— Ei, — ela sorriu tímida para o garoto, e ele não evitou o suspiro encantado como resposta.

Assim como repentinamente virou-se para dar atenção ao garoto, voltou a atenção para o celular. Os dedos correram nervosos pelo touch-screen [mais um pequeno poema reclamando de como ela se sentia incomodada pelas pessoas se aproximarem por sua beleza, e não pelo seu conteúdo].

P.P.P. - Projeto: Pode piorar?Donde viven las historias. Descúbrelo ahora