Cartas, bruxas e feitiços

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Dois camaradas estavam jogando cartas, à mesa pequena tinha espaço apenas para as cartas de jogo, de forma que ambos tinham de deixar suas bebidas no chão perto dos pés da cadeira. Um sol tímido penetrava por entre as nuvens densas do céu nublado, uma vastidão cinzenta que parecia infinita era visível a partir da janela quebrada, o horizonte sumia atrás de dunas intermináveis de areia cinzenta. Um dos camaradas apanhava as cartas com sua mão esquelética, um dente fujão escapa da gengiva amolecida e cai sobre o baralho, o osso é afastado sem cerimônia e o homem continua a reorganizar as cartas para mais uma partida do jogo, o outro sujeito apanhava o copo que parecia feito de algum tipo de porcelana, com tantas rachaduras que parecia prestes a se fazer em pedaços, dentro do recipiente estava um líquido espesso que lembrava água, porém imunda de algo que a dava uma tonalidade escura e densidade que beirava a de um sólido, no fundo do copo estavam algumas pedras, pedaços de algo preto flutuavam na superfície da água, o homem bebeu, o líquido entrou pela mandíbula skelita e se derramava farto sobre pontos onde deveria haver carne, escorrendo por sobre o corpo do indivíduo.

— Não jogamos demais? — O homem que havia acabado de beber perguntou com voz de rosnado.

— Muito pelo contrário — Uma voz afetada que deveria soar debochada e alegre, mas parecia um guincho saindo com a verbalização tosca do homem, a língua mole insistia em escapar por entre os dentes sempre que o homem abria a boca para falar — Estamos apenas começando.

E jogou as cartas de ambos sobre a mesa, enfim, começaram a jogar.

Angel levantou de seu sono no salto, o sabre em mãos já antes que estivesse em pé, sua cara de luta contorcia o rosto esbelto de cortesã em uma face tosca que lembrava a de um animal selvagem. A bruxa revirou seus arredores com olhos felinos procurando por alguma coisa, não acharam, mesmo assim, ela sentia arrepios como se um relâmpago tivesse atingido sua coluna vertebral. Os músculos rebeldes foram relaxando aos poucos conforme ela saia do sono e passava a fazer sentido da realidade, depois de relaxar o bastante para manter um nível apenas comum de alerta, passou a mão enluvada na testa, limpando um veio de suor salgado e suspirou sem energia.

Estava em um terminal, suspensa a sabe Deus quanto metros do chão, a pedrinha minúscula mal tinha espaço para abrigar a mulher, suas duas companheiras e o Wyvern que as acompanhava. Havia se certificado de afastar ao máximo a maioria das nuvens que pudessem ficar ao redor do objeto voador, as tornava mais fáceis de detectar, mas também tornava a aproximação de inimigos mais fácil de se constatar. Viviam, aproximou-se da mulher por trás e colocou a mão em seu ombro, reparou na outra ficando reta como uma rocha e quase movendo a arma para cortar-lhe a mão, desejou não ter feito aquilo mas prosseguiu.

— É meu turno de vigia — A arqueira dizia sem alterar a voz — Se continuar acordando não vai descansar nada.

Angel deixou os ombros penderem e voltou os olhos para os próprios pés, sentiu em cada fibra de seu ser como estava cansada, quanto tempo se sentia daquele jeito? O suficiente para que não se lembrasse quanto tempo fazia, lembrava vagamente de que em algum momento nos últimos meses ela começou a ter esses despertares repentinos ao longo da noite, desde então não dormia mais direito, o estado de cansaço virou seu novo normal e suas colegas repararam em como ela piorava até melhor que ela mesma. A mulher tinha olheiras se formando sob os olhos, sentia-se sempre do mesmo jeito, como se houvesse acabado de despertar de um desses sonhos muito ruins, destes pesadelos em que nos despertamos em estado de alerta, o corpo tem a ilusão de estar caindo num abismo e por alguns instantes, o espaço real faz pouco sentido e a realidade ausenta de perigos parece uma coisa estranha. Contudo, Angel nunca lembrava de nada, tinha é claro, a sensação de haver despertado de um sonho, mas quando forçava seus miolos para lembrar alguma coisa que fosse ao seu respeito, nada via-lhe a cabeça, o sonho fujão ia embora sem deixar mais que a vaga impressão de que ele havia existido e nenhum outro detalhe de sua natureza, esse fenômeno, Angel reconhecia, já começava a roubar-lhe a sanidade, era de se pensar se aquilo não era obra de algum diabrete ou gênio maligno.

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⏰ Last updated: Feb 17, 2023 ⏰

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