Estrada a Peripoara

Start from the beginning
                                    

Então avistou, mais pra frente, uma mulher na estrada acenando por carona. Cabocla de cabelos negros longos e lisos, blusinha vermelha, saia de borracha, botas até os joelhos e cara azeda de quem queria que o mundo se explodisse. "É muita bandeira", pensou com seus pedais, "o que uma morena bonita assim faz na beira da estrada no meio da noite? Deve ser arapuca da bandidagem". Ignorou-a e prosseguiu, incomodado com o silêncio. Se ao menos tivesse comprado um daqueles pendrives de música... Felizmente, teve a precaução de trazer café. Abriu a garrafa térmica, estava quente ainda, deu uns goles. Sentindo-se melhor, acelerou.

Mais alguns quilômetros haviam se passado quando a neblina caiu. Adriano teve de prosseguir devagar, redobrando a atenção. Em certo momento, quando mal conseguia enxergar a pista, decidiu ligar o pisca-alerta para nenhum apressadinho desavisado acertá-lo na traseira. Mas isso fez-lhe cair a ficha: desde quando entrara na rodovia, não avistara nenhum outro veículo, nem atrás nem à frente. Também não viu casas, plantações ou cercas pra gado, nenhum sinal de vida. Que estrada estranha. Como disse o velho. Tomou mais um gole de café, ao menos assim não engoliria seco.

Então avistou em meio às grossas nuvens brancas uma silhueta no acostamento. Era uma mulher acenando por carona. Cabocla de cabelos negros longos e lisos, blusinha vermelha, saia de borracha, botas até os joelhos e cara amarrada de quem pouco se lixava pro que achassem do seu visual. Era a mesma de antes! "Devo estar vendo coisas", pensou. Achou aquilo sinistro, mas decidiu parar. Podia passar o resto da vida se perguntando por que parou, mas, ainda assim, o fez. A mulher entrou, carrancuda, e seguiram viagem em silêncio. Quase imperceptível ao seu lado, a cabocla parecia uma assombração de tão quieta e imóvel. A ideia de estar dando carona a uma morena do além deixou-lhe arrepiado. Teve medo de perguntar-lhe onde ia e ouvi-la responder que ia ao cemitério ou coisa do tipo. Antes do medo impregnar-se de vez na boleia, decidiu puxar conversa. Perguntou o que uma belezura assim fazia sozinha no meio desse nada.

No mesmo instante, ela puxou da bolsa uma faca de cozinha e anunciou assalto. Adriano reagiu sacudindo o volante, fazendo-a balançar enquanto partia pra cima. Puxou os cabelos dela e tentou agarrar a mão da faca, mas o caminhão desgovernou de vez. No meio da confusão, sentiu a faca acertar-lhe a barriga. Viu estrelas com a dor, e então tudo escureceu.

Quando abriu os olhos estava sozinho na boleia, o caminhão indo a toda na direção de uma vaca. Freou com força, controlou no volante a carreta revoltando-se atrás, tirou o pé do freio e desviou do bicho fazendo uma curva longa, até o acostamento da pista contrária. A carreta fez que ia virar, mas suas rodas voltaram à pista por um triz. Sua rapidez e habilidade impediram-no de bater ou tombar! Prosseguiu aliviado, enchendo seu escapulário de beijos. Foi tudo um sonho. Não fosse seu anjo da guarda, não teria acordado a tempo de desviar do animal.

Mas a neblina não era sonho, nem o vazio perturbador da estrada. Sentia-se só naquele nada, uma solidão que o arrepiava. Tomou mais um gole de café, e mais uma vez lembrou-se do alerta do velho. O que mais haveria de estranho lá fora, escondido pelo breu? Com o rádio ainda sem sinal, chiando como se a civilização tivesse desaparecido, ou como se ele tivesse desaparecido da civilização, a luz dos faróis e o ronco do motor seguiam como os únicos sinais de normalidade a protegê-lo do escuro perturbador.

Prosseguiu. Depois de vencer uma baixada na marcha lenta e deixar as nuvens de neblina para trás, avistou outro vulto no acostamento. Era uma mulher acenando por carona, cabocla de cabelos negros longos e lisos, blusinha vermelha, saia de borracha, botas até os joelhos e cara zangada de quem não queria nem saber. "Não, né", exclamou. Teria de ser maluco para parar novamente, mas como já fizera besteiras piores na vida, parou mesmo assim. Porém, só deixou a mulher entrar depois de mostrar o que tinha na bolsa. Ela resmungou, mas abriu a bolsa pra ele: não havia faca nem nada. Foram em frente, ela séria e silenciosa, ele preocupado. Como podia tê-la visto três vezes na estrada? Isso era pior que estranho, era assustador. Por fim, juntou coragem e decidiu falar com a cabocla. Mas dessa vez achou bom ser mais comedido, por isso começou perguntando seu nome. Imediatamente, ela puxou uma faca de cozinha da bota e anunciou assalto. Adriano reagiu dando uma ombrada nela, a seguir partindo pra cima. Puxou os cabelos dela e tentou agarrar a mão da faca, mas o caminhão desgovernou. No meio da confusão, sentiu a faca acertar-lhe a barriga. Viu estrelas com a dor, e depois de um estrondo, o breu lá de fora invadiu a boleia.


---


– Bom dia, doutor – disse o policial rodoviário – Como está nosso paciente hoje?

O médico estava ao lado do leito de Adriano, medindo sua pulsação. Observou por baixo da pupila com uma lanterninha.

– Olá, tenente. Ele segue inconsciente. E pelo jeito, vai demorar pra acordar.

– Pena. Tinha umas perguntas a ele.

– Que tipo de pergunta?

– Por exemplo, o que diabos ele andou tomando enquanto dirigia. Testemunhas viram-no circulando pela rodovia ontem à noite. Pelo jeito, não percebeu que contornava a rotatória da estrada velha, e passou pelo mesmo lugar no mínimo umas três vezes. Pode essa? Tudo bem que a neblina estava forte, mas também não era pra tanto.

– Hm. Posso fazer exame toxicológico, mas pelo que me conta é quase certo que ele tomou rebite, e não deve ter sido pouco.

– Ou coisa pior. Estranho, pois não encontramos nada no caminhão.

– Ele deve ter tomado tudo. Misturado com café provavelmente, tem uns que adoram adoçar seu café com essas porcarias... Mas diga-me tenente, não havia mais ninguém envolvido no acidente? Antes de perder a consciência, ele perguntava sem parar sobre uma morena que estaria com ele.

– Não doutor, não havia mais ninguém quando chegamos. O caminhão virou sem bater em nada, e pelo estado da boleia, se tivesse mais alguém lá dentro, não conseguiria sair sem o auxílio dos bombeiros.

– Então está explicado. Ele teve um delírio provocado pelos remédios e pela privação de sono, o que o levou a tombar nalguma curva.

– Sim, foi isso.

O policial virou-se para sair, mas parou para coçar o queixo, tentando lembrar de algo. Então o médico, continuando com seus exames, levantou os lençóis. Vendo o curativo na barriga de Adriano, o policial levou o dedo indicador aos ares, fisgando a ideia no ar.

– Ah sim, doutor. Quase esqueço de lhe perguntar, como acha que ele se feriu na barriga? Nem nós nem os bombeiros achamos qualquer fragmento cortante na boleia.

– Ora... Boa pergunta. Também não sei dizer.

Os dois se entreolharam, e voltaram-se a Adriano. Calado no seu sono profundo, no rosto um sorriso ligeiro, ele parecia pouco disposto a compartilhar segredos.

Cabra de Bigode - e outras históriasWhere stories live. Discover now