004. Último Beijo

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Iara estava sentada no chão, de pernas cruzadas, em frente ao seu corpo de sereia, morto. Ela o observava atentamente, sem esboçar alguma reação através de suas feições. Porém a sua consciência estava pesada por ter matado várias pessoas inocentes.

Ela escutou alguém se aproximando e deduziu que seria Anahí. Seu deus havia lhe dado um aviso de que teria que quebrar a maldição da moça antes de partir para os céus.

Ao olhar para trás, por cima de seu ombro, ela avistou a indígena parada a poucos metros de si, a encarando seriamente. Por alguns segundos nenhuma das duas pronunciou uma palavra, até que Iara se pôs a abrir a boca, porém, ao ver que ela ia falar algo, Anahí foi ágil e mandou uma frase primeiro.

— Então você é mesmo real.

A ex-sereia a olhou em seus olhos e confirmou com a cabeça. Mais uma vez houve um silêncio entre elas, então Iara voltou o olhar para o seu corpo com cauda caído aos seus pés.

— Você… Pode me ajudar a empurrá-lo para a água?

A indígena olhou de relance naquela mesma direção e caminhou para perto, se abaixando e segurando os braços da sereia morta, até que Iara a acompanhou e segurou a cauda. Assim, ambas ergueram o corpo daquela terra e o carregaram até o rio, aonde o jogaram. Ao entrar em contato com a água, ele emanou uma luz muito forte e depois desapareceu.

As duas assistiram o que aconteceu em silêncio. Apenas quando sentiu a brisa bater no seu rosto e fazer seus cabelos esvoaçarem levemente, Iara se virou para Anahí com os dizeres:

— Eu sinto muito pela sua irmã.

A indígena encarou profundamente a entidade antes de desviar o olhar para o chão. Ouvir aquela frase de outras pessoas era, de certa forma, até fácil, mas ouví-la de quem matou Jaci lhe causava um mix de sentimentos negativos.

E agora, por ser um espírito, a outra conseguia sentir o que a garota estava sentindo. A entidade nunca se sentiu tão fútil na vida como se sentira naquele momento. Foi por isso que ela abaixou a cabeça e disse mais uma coisa:

— Eu sei que não mereço o seu perdão.

— Não mesmo — Anahí emendou a frase da garota, com muito pesar nas suas palavras. — Mas eu vou ficar bem. Um dia.

Iara assentiu.

— Você veio aqui para ser libertada da maldição, não foi? — Perguntou.

— Foi — e a garota respondeu com um tom de voz rouco e baixo, quase inaudível.

Ela se virou para a entidade, de cabeça erguida. Estava pronta para ganhar aquele maldito beijo e depois ir embora.

Por dentro, Anahí estava com muita raiva daquela à sua frente. Era uma raiva que se intensificava a cada segundo que se passava. E vê-la diante de si estava lhe causando vários calafrios.

Notando que a indígena queria logo se ver livre daquela história de maldição, Iara se virou para ela. Deu uma olhada na face daquela que tentara seduzir mais cedo — sem saber que era ela quem poderia matar o seu corpo de sereia — e se aproximou, de modo que a distância entre elas ficasse de apenas alguns centímetros. Vendo a garota tão perto, a entidade se viu ficar desconcertada, dessa vez.

— Eu te disse que você era bonita — falou, vagarosamente. — E eu não menti. Você é realmente muito bonita.

Antes que a outra pudesse responder alguma coisa, a entidade lhe puxou pela nuca e selou os seus lábios. A princípio, Anahí se arrepiou por sentir a boca quente da ex-sereia sobre a sua, de modo que quase fez recuar. Porém, aos poucos, percebeu que Iara estava tentando se redimir através daquele ato e, por isso, foi se soltando e se entregando ao momento.

Não que um beijo lhe faria esquecer que aquela moça era a responsável pela morte de sua irmã ou pensar que ela era digna de ser perdoada. Aliás, Anahí percebeu através do gesto que Iara realmente não queria lhe causar toda aquela dor, porém ela estava causada e não tinha mais como voltar atrás. Jaci não ressucitaria só porque Iara estava arrependida de tê-la afogado, e isso fazia a indígena alimentar o rancor que sentia pela autora do crime. Porém, no fundo, ela sentia que aquilo era mais do que um beijo para libertá-la da maldição de poder matar pessoas as beijando. Por isso abraçou a entidade pela cintura e a trouxe para mais perto, de modo que sentisse o corpo nu alheio materializado se chocando contra o seu, a temperatura quente que emanava dele e a sincronia em que elas duas se enlaçavam.

Ficaram assim por vários minutos e, por incrível que pareça, o ar não faltou em momento algum para Anahí. Ela ficou tão imersa e centrada no beijo que até estranhou quando Iara se afastou. Tentou se aproximar novamente da entidade, porém esta deu três passos para trás.

— Nos separei contra a minha vontade, também — ela pronunciou. — Mas eu preciso ir, agora.

Anahí a encarou profundamente enquanto ajeitou a sua postura. Quis falar algo em troca, mas não soube o que pronunciar.

— Eu espero que um dia você consiga me perdoar, Anahí — diante do silêncio da indígena, a ex-sereia tomou novamente o lugar de fala. — Por que, no dia que você chegar aos céus, eu quero te beijar novamente.

Assim, ela brilhou e depois desapareceu.

Quando se viu sozinha — e livre da maldição —, a garota voltou para a sua aldeia, porém optou por não contar para ninguém o que acabara de lhe acontecer. Nem mesmo para Iraci, a sua avó.

Naquele dia Anahí sonhou com Jaci. Foi um sonho sereno, tipo uma memória, no qual as duas brincavam no Rio Madeira quando eram crianças. Assim que acordou, ela o interpretou como uma mensagem enviada por sua irmã, alegando que estava bem aonde estava. Aquele sonho, de certa forma, tranquilizou o coração da caçula, que passou a não enxergar mais a morte da mais velha como um enigma e acreditou que tudo o que vivera no dia anterior fora real. A partir daquele dia, Anahí passou a ser mais confiante nas crenças da sua comunidade e passou a não rebater mais as histórias que eram contadas pelos outros indígenas,  principalmente as referentes à Iara, Mãe D'água.

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1046 palavras.

𝑶 𝑴𝒊𝒔𝒕𝒆𝒓𝒊𝒐 𝒅𝒐 𝑹𝒊𝒐 𝑴𝒂𝒅𝒆𝒊𝒓𝒂 | Conto ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora