Prólogo

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Uma rapariga via o mundo a preto e branco, descolorido de cor e de qualquer alegria. Ela não percebia como as pessoas podiam sorrir, não quando o mundo era um lugar tão cruel e mesquinho. Ela tinha perdido ambos os pais num acidente de carro em pequena, o que resultou na perda de todas as memórias que tinha criado até então. "É uma reação ao trauma", os médicos disseram. Tinha 12 anos na altura e a sua mente estava em branco, sendo que a sua única memória remanescente era o seu próprio nome. Acabou por ser entregue a um orfanato, visto que no seu registo familiar não constava qualquer parente vivo ou em condições de tomar conta dela. Lá, as outras crianças tinham medo dela, pois ela não se ria, não chorava.... Parecia um robô sem emoções, que não sofria, mas também não se alegrava. Também como poderia ela ficar triste se nem se lembra dos seus pais? Para ela, o facto de lhe dizerem que eles tinham morrido foi o mesmo do que lhe terem informado do falecimento de um desconhecido qualquer. Não sentiu nada, como poderia? Tentou descobrir tudo o que podia através de fotos e álbuns de família que lhe trouxeram de sua casa para o orfanato, porém nada lhe despertou as memórias do passado. Também lhe trouxeram brinquedos, porém ela não se conseguia divertir com eles. Não depois de ver como a vida era efémera. Começou a questionar-se acerca do seu lugar no mundo, do porquê de ter nascido se iria acabar por se esquecer, perder tudo o que tinha e que fazia dela o que ela era... Ela tentava, a sério que tentava ser como as outras crianças, divertir-se com elas, mas elas fugiam daquela menina pálida, com olhos sem brilho, que pegava nos brinquedos e passado poucos minutos pousava-os, adquirindo uma postura pensativa. Os funcionários do orfanato faziam-na ir a uma psicóloga todas as semanas, desejavam que aquela menina recuperasse as memórias e parasse de se assemelhar cada vez mais a uma máquina. Contudo, como a rapariga não se lembrava de nada, não existiam gatilhos que pudessem desencadear alguma memória. Mesmo com recriações o mais aproximadas possível de fotografias de família, nada despertava uma emoção naquela rapariga. Era assustador. Com o passar dos anos, os funcionários e a sua psicóloga acabaram por desistir de certa forma de a tentar curar. Se eles fossem verdadeiramente honestos consigo mesmos, acabariam por admitir que o que eles desejavam ardentemente era que aquela rapariga fizesse 18 anos, para sair do orfanato e das suas vidas para sempre. Ela dava-lhes arrepios, e embora eles não soubessem a razão, suspeitava-se que talvez fosse pela forma como ela era uma lembrança constante do quão impiedoso o mundo pode ser. Ela acabou por encontrar na escrita uma forma de retratar os seus pensamentos relativos ao mundo em que vivia, nos números, uma forma lógica de descrever inúmeros acontecimentos e até mesmo na estatística, um modo de prever, através de algoritmos, moldes do passado e probabilidades, o futuro, a evolução, até certa extensão. Na atualidade, aos 17 anos, esta jovem era considerada um génio, com um intelecto superior ao da maioria dos humanos, mas que falhava em entender emoções humanas. Ganhou uma bolsa de estudo completa no MIT, mas ainda se debatia com o seu passado. Queria se lembrar, queria sentir algo, ao invés de ser uma analista da vida que decorria à sua volta. Na véspera de Natal, foi passear pelas ruas, como fazia desde que tem memória, na esperança de algum ano conseguir entender o espírito de Natal, o que fazia as pessoas sair às ruas cantar os cânticos de Natal, passear em família ou com namorados para observar umas simples luzes e decorações nas ruas, comprar prendas... Porque é que tanto dinheiro era gasto em coisas tão insignificantes? Como é que umas luzes ou prendas fazem as pessoas sorrir tanto? Ela não conseguia conjurar nenhum motivo racional para este comportamento. Neste dia, todos os anos, todos no orfanato se sentavam juntos à mesa, riam-se, contavam histórias, comiam sobremesas típicas de Natal e trocavam prendas quando tocavam os sinos à meia-noite. Claro que havia sempre quem chorasse devido às memórias dolorosas de natais passados com a sua família, mas, em boa verdade, os outros miúdos arranjavam sempre maneira de os contagiar com a sua alegria, pelo que no final, todos se riam juntos. Todos... Bem, exceto ela. Ela nunca se encaixou no meio dos outros jovens do orfanato, pois ela era diferente, algo que eles não entendiam, por isso temiam. Ao início, ela ainda regressava ao orfanato para jantar, mas sentia que estragava o ambiente, que estava ali a mais, que não pertencia ali. Por isso, acabava sempre por ficar o dia todo fora do orfanato na véspera de Natal, regressando quando já todos dormiam. Se regressasse antes, teria que se juntar aos outros, visto que os funcionários tiravam todas as crianças dos quartos nesse dia, o que ela não queria de todo. No dia de Natal acordava cedo e saia de casa até ao final do dia para não incomodar os outros miúdos, especialmente as crianças mais novas, que olhavam para ela e choravam, chocadas pela sua falta de emoções, sendo que algumas das mais velhas, perante esta situação, até lhe chamavam de bruxa, abominação, máquina, um pecado que nunca deveria ter existido...

Sem memóriaWhere stories live. Discover now