Capítulo 35 - Três Dias (Miguel)

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E foi naquele momento que me lembrei do meu sonho recente, da discussão com a mulher de jaleco. O local com paredes brancas agora me parecia claro que se tratava de um laboratório. E também me parecia claro que no sonho eu estava insistindo em fazer uma dessas viagens. Exatamente a segunda viagem que deu errado após o primeiro teste. Ela ainda tentou me fazer desistir, mas minha teimosia acabou vencendo.

Ou seja, eu tinha tanta culpa quanto ela por estar aqui.

A sigla P.E.B. Sim! Agora faz sentido!

P.E.B. significa Projeto Efeito Borboleta!

— Doutora Nunes... — murmurei, lembrando daquelas palavras que apareceram no meu sonho. — É o seu sobrenome, né? Doutora Cenna Nunes. Assucenna Nunes. Então esse era o primeiro nome! Assucena.

Ela arregalou os olhos e sorriu, eufórica. — Sim! Esse é o meu nome completo! Assucena Nunes! Você está lembrando!

— Não. Eu não lembro. Eu apenas tive um sonho. E você aparecia nesse sonho. Ou, melhor, sua versão adulta. A gente estava num tipo de laboratório e esse nome estava gravado no seu jaleco. E a gente estava discutindo. Você queria me impedir de fazer algo, provavelmente, esta viagem que deu errado e me fez parar aqui. Mas eu te forcei a mudar de ideia.

— Fragmentos de memória... — murmurou ela, enquanto baixava os olhos, parecendo lembrar do fatídico dia. — Sim. Você insistiu em participar. Mas eu devia ter te impedido.

— Só que eu fui teimoso — contra argumentei. — Mesmo assim, você também fez a viagem apenas para me ajudar, mesmo sabendo dos riscos.

— Sim — confirmou ela, erguendo os olhos para mim. — Depois de confirmarmos que sua viagem o levou para o destino errado, eu sabia que você precisaria de ajuda para retornar e tive que vir. Não te abandonaria nunca.

— Obrigado pelo esforço em me ajudar.

Ela assentiu. E ficou bem pouco à vontade. Admitir seus erros parecia algo que a machucava muito.

— Eu dava aulas de Física Quântica num curso exclusivo. E você era meu melhor aluno, Henry. O mais promissor.

'Ouviu só, Tai? Eu era o melhor aluno dela O melhor aluno de Física Quântica!' — provoquei.

"Grande coisa..." — desdenhou minha metade.

— E quando mostrei o meu projeto, você insistiu em ser voluntário para um dos testes — prosseguiu Cenna. — Mas eu... devia ter te barrado — ela continuou se cobrando. — Mesmo com os dados mostrando que era seguro após o primeiro teste, eu devia ter impedido você de fazer a travessia.

— Não se preocupe, está tudo bem — eu disse a ela.

— Além disso, do jeito que o Miguel é chato e teimoso — complementou Tai —, ele devia ter enchido tanto seu saco para fazer essa viagem que você provavelmente o amarrou e jogou a fórmula goela abaixo só para ver ele calar a boca.

— É... — admitiu Cenna, deixando escapar um sorriso meio amargo. — Foi mais ou menos assim que aconteceu. — Mas logo o sorriso sumiu. — O que não me isenta de culpa.

—Existe algo mais que precisamos saber sobre essa viagem no tempo? — perguntei, sentindo o coração apertado ao contemplar seu olhar entristecido.

De certa forma, o destino acabou favorecendo-a, pois o seu corpo de criança acabava lhe dando uma vantagem psicológica sobre nós.

Ela era fofa demais para ficarmos bravos.

— Existe mais uma coisa importante a saber. mas não é exatamente uma falha. É mais uma regra — prosseguiu ela nas explicações. — É que quando se faz uma travessia pelo tempo, se traça um caminho marcado pelo fluxo temporal. Se tudo desse certo e a consciência alcançasse o próprio corpo no passado, não haveria limites para futuras tentativas. E a pessoa poderia fazer milhares de travessias.

—Contando que não houvesse a falha que zoou o destino final — acrescentei.

—Sim. Contando que não houvesse a falha, poderia se fazer milhares de travessias — pontuou ela. — Mas como a realidade se mostrou diferente, esse caminho se tornou instável e a consciência viajante não pode mais alcançar o corpo original no passado. E devido a isso, só é possível fazer mais uma travessia. Ou seja, quando a consciência viajante cai numa mente catalisadora, ela só tem mais uma chance para retornar. Não há terceira chance. Tudo fica limitado a uma viagem de ida e uma de volta.

— Então, se alguém cair no corpo errado na vinda, e depois cair em outro corpo errado no caminho de volta, aí ferrou. Fica naquele corpo errado para sempre.

— Basicamente, é isso — confirmou ela, enfatizando logo depois: — Mas na viagem de retorno é quase impossível ocorrer um erro. A consciência sempre alcançará o próprio corpo no futuro, sem risco de desvios.

— Também não tinha riscos no segundo teste e o Miguel veio parar aqui dentro de mim — alfinetou Tai.

Cenna se limitou a baixar a cabeça e não contestou o que Tai dissera. 

— Tenho outra dúvida — questionei. — Por que eu fiquei com amnésia? Você parece lembrar de tudo, mas eu não lembro de quase nada desde que despertei no corpo dela. Eu até lembro de coisas que aprendi, de habilidades que eu devo ter assimilado, mas não guardei nenhuma lembrança pessoal. No máximo, tenho esses fragmentos de memória que surgiram na forma de um sonho.

— Esse se tornou um dos maiores riscos em uma travessia temporal quando se cai em uma mente catalisadora: a perda de memória. É algo que tem uma porcentagem muito grande de ocorrer. Digamos que eu joguei com a sorte quando também fiz a travessia. Poderia ter ficado sem as memórias como você, o que tornaria minha travessia inútil. Mas tive sorte.

— Tenho outra pergunta — questionou agora Tai. — Você disse que para fazer a viagem no tempo é preciso mentalizar a época a ser visitada. Ou seja, é preciso ter uma lembrança para guiar a consciência até a época desejada. .

— Podesim. Porque para retornar não énecessário ativar nenhuma lembrança — informou Cenna. — Bastava querer retornar. Sem segredos. Apenas a força de vontade básica já é suficiente. — pontuou ela em seguida. — Se a travessia ocorresse sem erros, com a consciência alcançando o próprio corpo mais jovem, não seria necessário nem a ingestão da fórmula. No nosso caso, porém, como caímos em corpos errados, para podermos retornar se torna necessário a ingestão da fórmula. Mas basta a ingestão da fórmula que ela já faz todo o trabalho, sem a necessidade de lembranças — garantiu ela. — Porque a consciência viajante quer voltar para o corpo de origem de maneira instintiva. E a fórmula apenas estimula esse caminho natural.

— Quer dizer que se eu tomasse a fórmula, retornaria imediatamente para o meu corpo no futuro?

— Não imediatamente. O processo de estimular o retorno não é imediato. A fórmula precisa de um tempo para alcançar o sistema nervoso central e ser absorvida pelos neurônios para permitir a travessia. E é apenas depois de três dias que o processo se conclui. Antes disso, a consciência permanece onde está.

—  Então, após a ingestão da fórmula, ainda demora três dias para a consciência voltar para o futuro.

— Exatamente — confirmou ela. — Três dias... E depois de três dias a consciência finalmente consegue completar a travessia e retorna para o corpo original no futuro, recuperando todas as memórias perdidas.

"Não..."

Consciência Viajante 2Where stories live. Discover now