9 - O sorriso da beleza

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Eu já havia estado naquele lugar, não se passou muito tempo desde a última vez que visitei essa cidade, minha estadia havia durado alguns dias apenas, e se não fosse pelo açougue peculiar na periferia da cidade, eu não a teria reconhecido.

A cidade de Karyn não era muito longe de minha cidade natal, e a única coisa que as separava era uma longa estrada de terra que rendia uns dois dias de viagem, assim, era estranho para mim perceber que eu estava, de certa forma, perto de Hhuir, a cidade onde cresci.

Apertei as rédeas com esse pensamento, Hhuir sempre me fazia lembrar de Miranda, e eu temia trazer à tona em minha mente aquela boa vida que nunca mais voltarei a ter.

Seguimos lentamente enquanto passávamos pelas poucas casas, e logo a quantidade começou a aumentar. Fomos saudadas pelas ruelas e vielas já movimentadas pela manhã, alguns vendedores ambulantes anunciavam suas mercadorias e os lojistas já preparavam seus estabelecimentos para receber clientes.

Havia um garoto engraxando sapatos, um homem vendendo tochas, uma mulher usando muitos cordões de miçangas, sentada em frente a uma pequena mesa cheia de cartas, 'Leio o seu futuro por algumas moedas de cobre', era o que dizia a plaquinha pregada na mesa.
Era nostálgico.

Karyn não era muito diferente de Hhuir, agitada e podia até ser considerada pacífica. Haviam guardas em alguns pontos da cidade, mas era isso, eles não estavam preocupados em vigiar a periferia da cidade, não se importavam com segurança dos moradores daquela área, mas era melhor assim. Soldados do rei eram desonestos e cruéis, conseguiam ser piores que os bandidos que aterrorizavam certas partes da cidade.

Na última vez que vim aqui, não chamei muita atenção, os moradores não se importavam muito com forasteiros sujos e molambentos.

Mas eu estava com Meish, cuja pele clara e mãos delicadas faziam-na parecer uma aristocrata, atraindo olhares de todos os cantos para si. Cada passo que ela dava era elegante, e emitia uma aura nobre, como se houvesse uma camada que a separava do resto do mundo.

Me encolhi para diminuir minha presença, mas não foi suficiente para ser ignorada pelos olhares. Pessoas comuns odiavam aristocratas, diziam que eram pessoas ricas, impiedosas e esnobes, e de fato, os poucos que eu havia visto eram o suficiente para me fazer sentir nojo. Me virei para Meish.

"Eles estão olhando para você, vamos descer do cavalo e caminhar." Sussurrei, estávamos chamando muita atenção. Ela concordou, e descemos, passando a caminhar com o cavalo ao lado.

Nunca tinha prestado atenção ao cavalo, mas ele era bonito, a pelagem marrom escura brilhava à luz do sol, a crina longa e lisa estendia-se por suas costas e, mesmo com a sela velha em seu dorso, ele aparentava ter sido bem cuidado.

Olhei para Meish ao meu lado, seu rosto parecia levemente preocupado.
"Quando chegaremos?". Perguntei.

Seus olhos estavam desfocados, como se estivesse em transe, um transe que foi interrompido pela minha pergunta, ela olhou para mim e fechou os olhos, parecendo se concentrar em algo. Então os abriu.

"Vamos ter que esperar a noite. Por ora, vamos comer e pagar um quarto para descansarmos." Ela respondeu enquanto acariciava o focinho do cavalo, os olhos escuros parecendo emitir um leve brilho. "Você fez bem em nos trazer aqui, garoto, em breve vai poder descansar."

Paramos na primeira pousada. Meish tirou moedas de ouro de algum lugar e as entregou ao proprietário, um homem alto e gordinho, que logo mandou um criado levar o cavalo para o estábulo.

Outro criado foi chamado para nos guiar até o quarto, deu-nos uma saudação respeitosa seguida de um sorriso polido e profissional. “O caminho é por aqui, jovem casal, sigam-me.”

Encarei-o atordoada. Oh, não. Ele nos confundiu com um casal, abri a boca para desfazer o mal entendido, mas desisti ao lembrar que estava usando roupas masculinas. Ele provavelmente pensava que eu era um jovem rapaz, e acompanhado de uma bela mulher de aparência jovial, não era difícil chegar à conclusão de que éramos um casal.

O sorriso nunca deixou o rosto do criado, ele subiu as escadas e nós o acompanhamos, seguimos por um corredor com algumas portas, até que ele parou em uma específica, retirando do bolso uma chave, que entregou a Meish.

“Esperamos que tenham uma boa estadia em nossa pousada, estimados hóspedes. Se não houver horário especificado, ao meio dia, o almoço será servido, e o jantar ao crepúsculo, mandaremos alguém para trazer-lhes as refeições, se precisarem de algo mais, podem solicitar de qualquer um dos empregados.” O rapaz se curvou novamente.

Sorri para ele e assenti, Meish acenou em concordância. Ele então foi embora, deixando-nos a sós, e entramos no quarto.

Este era um pouco mais sofisticado do que o que eu havia estado antes, havia uma penteadeira em um dos cantos, uma cama confortável e mais um armário para se guardar os pertences e cadeiras acolchoadas, além de a mobília ser de melhor qualidade. Era realmente agradável, adentrei o quarto enquanto Meish fechava a porta e me sentei na cama, depositando a bolsa com os cantis em cima do criado-mudo ao lado. Meish também se sentou, próxima a mim.

"Hoje precisaremos ficar aqui, por ora, é necessário que sejamos o mais discretas possível." Ela me encarou seriamente.

Observei-a de cima a baixo, Meish parecia ter cerca de vinte e dois anos, e mesmo em roupas menos chamativas como o vestido que usava quando a conheci, ela ainda se destacava, o formato suave do rosto, o cabelo brilhante e sedoso, a tonalidade clara de pele.

Ela não era nada discreta, por onde quer que passasse, atrairia olhares. Eu ri, confundindo-a, suas palavras foram realmente engraçadas.

"Por que está rindo?" Ela parecia genuinamente confusa com a minha reação.

"Você não parece uma pessoa comum da cidade, desse jeito, não vai conseguir não se destacar." Respondi.

Era engraçado, ela era elegante e distante, como uma beleza celestial, um ser de outro mundo, longínqua e onisciente. Mas carecia do conhecimento popular da cidade, não tinha percebido os olhares medrosos e hostis das pessoas sobre si, e nem a forma como andava, chamaria atenção em qualquer lugar.

"Oh." Ela disse. "Então o que deveria fazer para evitar isso?"
Fitei-a. "A primeira coisa a fazer é escurecer sua pele com alguma coisa, um pó para o rosto servirá. E também, é interessante trocar as roupas.
"
"Por que trocar a roupa?"

"São elegantes demais, e destacam muito seu tom de pele." Continuei analisando-a, eu havia passado os últimos anos fingindo ser um rapaz, e isso tinha me dado alguma experiência com disfarce, mudar a roupa, o penteado, as expressões faciais e a linguagem corporal, faria uma grande diferença, olhei para Meish. "E a terceira coisa a se fazer é mudar a forma como você anda, você precisa parecer uma pessoa comum, e não alguém da realeza."

Meish ficou pensativa por um tempo, e então seu rosto floresceu em um belo sorriso, desta vez, não era um sorriso qualquer, era genuíno e sincero. "Tudo bem, então me ensine como ser ‘normal’." Disse ela em tom divertido.

Não pude evitar sorrir de volta, ela parecia uma garotinha que ganhou seu vestido dos sonhos, era fofo. Me levantei para ficar de frente para ela, e fiz uma saudação exagerada. "Vou dar o meu melhor." Respondi,  fazendo seu sorriso se alargar.

Misty (Girl's Love)Where stories live. Discover now