Delito

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Desde que você apareceu naquela calçada e sentou do meu lado sem se importar com a solidão, com o sol escaldante que não abandonava aquele espaço aberto por nada, sem ligar para a ausência de algum vento que pudesse nos refrescar, tudo mudou.

Acho que você foi a existência mais imprevisível que fez parte da minha história. Não que eu seja muito sociável e que esteja rodeada de pessoas que me marcam de alguma forma. Não, não é isso. Eu posso até ter pessoas ao meu redor, orbitando meu mundo, querendo meu espaço, mas todas elas são temporárias. Suas presenças não se comparam a uma translação. Não chegam nem perto disso pois não aguentam o sol, a solidão. E vão embora. Só que você foi diferente.

Você chegou e não queria meu espaço, não queria me tomar rapidamente, não queria me beber com o desespero de alguém que passa pelo deserto e finalmente encontra o oásis. Você se aproximou de mim como alguém que caminhava incansavelmente por quilômetros e quilômetros com uma esperança fogosa que em algum momento começou a perder a força e te fez parar para descansar justamente naquela calçada.

Eu estava lá. Seus olhos avistaram os meus. Os seus de gente que lutavam contra o cansaço e os meus de gente cansada.

- Oi, Simon... - Você disse, e depois do meu sorriso e saudação começou a desabafar. - Estou cansada de andar, andar, andar e não encontrar nada. Sempre dou de cara com as mesmas coisas, essas coisas que eu não suporto. Quero que elas parem de existir para que eu não tenha que lidar com elas. Ou, sei lá, que eu morra para não ter que lidar com elas".

Nem lembro o que eu falei, mas acho que devo ter dito algo que te agradou, porque no outro dia você seguiu viajem, mas como não encontrou nada, retornou àquela calçada. E descansou lá.

E ai passou a estar comigo todo dia.

Posso dizer que eu parecia seu ponto de descanso, de entretenimento. E eu amava suar debaixo daquele sol escaldante sentada do teu lado. Não sei. Eu adorava aquela paz. Você falava bastante, rapidamente e animadamente. Ria bastante, encostando seu corpo no meu, batendo palmas e chorando. Ficando vermelha. Mas tudo ainda era lindamente pacífico. Suas histórias acendiam uma chama no meu peito que me aquecia e a fumaça acalmava meu cérebro. Tudo era muito querido. E também tinha aquela sensação de poder contribuir com uma ajuda que parecia valiosa no ar. Sempre gostei de ajudar, mas ajudar você deu um significado a mais na minha existência porque eu sempre ouvia sobre sua caminhada. Passarinhos me contavam sobre essa sua jornada incessante. Mas eu não sabia que teu caminho era tão fatigante. Te ajudar amaciou meu ego, mas também me fez acordar para que nem tudo era do jeito que eu imaginava. A vida dos outros pode ser muito mais desgastante que a minha e eu não deveria me enganar só por vê-los sempre de pé. Quanta agonia um coração guarda? Tu deu um significado real a isso.

Eu gostei de fazer parte do teu repouso e saber da tua estrada. Comecei a perceber coisas que não havia percebido e compartilhei coisas que nunca deveria ter compartilhado.

A minha mente é toda sem sentido, e eu agradecia por você gostar dela assim mesmo. Por cada olhar atento para tentar compreender o que eu tentava dar sentido, por apreciar o sentido que vinha à tona com muita luta. obrigada, obrigada!

Gosto de lembrar apenas dessa parte da nossa história, porque depois eu não consigo lembrar quando que você parou de caminhar para ficar comigo. Quando que você disse "não vou hoje" e assim decidiu ficar para rir das minhas bobagens? Quando que você achou meu descanso mais interessante que sua caminhada? Quando que minha luta interna tomou lugar na sua mente, na sua vida? Quando eu te dei um significado? Quando sua mão gostou do meu corpo? Quando seu coração quis receber parte da minha angústia para que nossas metades se juntassem e se tornassem algo maior?

Quando você se apaixonou?

Foi naquele dia de sol que os raios de sol reluziram no meu olho e você viu que ele é uma mistura de castanho claro e escuro? Isso te tocou? Por quê? Ou foi quando eu te disse que você era boa e não precisava provar isso para ninguém? Foi quando eu disse para você não se importar, porque na verdade ninguém se importava? Foi quando eu disse "você pode descansar"?

"Seus olhos são tão lindos, simon..."
"Adoro seus cabelos! "
"Adoro seus conselhos"
"Nunca contei isso pra ninguém..."

Eu deveria ter percebido antes e te afastado.

Como fui tão burra?

Eu deveria ter te dito que meus olhos te quebram e não te reconstroem. Eu deveria ter te dito que minha mente te ilumina, mas te corrompe. Eu deveria ter te dito que sou uma caixa de segredos, meus e do outros, mas não dou a mínima para eles. Eu deveria ter te dito que meus ouvidos cansam.

Eu deveria ter te dito que eu não iria ficar para sempre ali, que algum dia eu me levantaria e seguiria com a minha própria caminhada. Eu deveria ter te dito que também estava em período de descanso. Deveria ter te dito que eu ia embora em algum momento.

Mas eu não disse.
Porque eu queria que você me abandonasse primeiro para que só aí eu te abandonasse. Seria tão fácil te dar tchau sem saber da sua obsessão com meus olhos, meu papo e meu corpo. Sua paixão pela minha presença.

Sinto muito.
Achei que você fosse embora.
Você deveria ter ido embora.
Idiota.

Sabe o que me deixou pior? É que eu fui embora. Eu fui embora, mas quando voltei, você ainda estava lá.

- Por favor, vá embora! - eu disse.

- Você não vai mais voltar? - Por que você disse isso com o branco dos teus olhos aguados e o castanho se borrando, como tinta em um papel. Por que estava tremendo?

- Apenas vá embora, por favor. Procure por outros olhos, certeza que vai encontrar!

- Eu já encontrei os seus. Ninguém tem os seus olhos. Por que não fica aqui? Fique! - Insistiu. Insistiu tão fervorosamente, tão dolorosamente, que meu coração quebrou. Em mil pedaços. Imagino se um coração pode se quebrar em bilhões de pedaços. E penso em como está seu coração agora.

Fui embora, sem olhar para trás.
Ouvi que você ainda não se foi, mas que tem outra pessoa te fazendo companhia naquela calçada. Ouvi que você ri muito. Ouvi que você conversa muito. Ouvi que parece feliz. Mas ainda vive ali, e dali não sai.

Espero que você vá embora e não olhe para trás. Espero que vá, e quando se lembrar de mim, sinta ódio da minha vida. Espero que me xingue, e depois relaxe. Espero que quebre minha existência com suas palavras, pise nos fragmentos e depois siga sua vida. Não precisa nem se retratar. Espero que siga feliz. Espero que lembre de mim, e quando fizer isso, respire fundo. Diga que foi um pesadelo. Espero que o ar que entra em seu corpo me dissipe de sua mente. Espero que lembre de mim e então, não se importe.

Quando fizer isso, eu prometo que volto e olho para nossos fantasmas para pedir desculpas adequadamente.

Desculpa por ir e sentir tanta saudade.
Sou um monstro.

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⏰ Last updated: Oct 08, 2022 ⏰

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