Capítulo VI - Ducit me desperandum

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Era uma noite intensa. As estrelas brilhavam de forma inquietante, como se buscassem pela harmonia entre a claridade que emanavam e a escuridão que pintava o céu. Abaixo da densa atmosfera, estava a longa estrada que rasgava a terra seca e acompanhava, curiosa, o caminho que Abner e Caio percorriam sobre a moto.

Sob o luar e acompanhado daqueles malditos gominhos, Abner aproveitava o calor e a emoção de sentir as rajadas de vento cortarem o capacete, numa dança síncrona com o visor que protegia seu rosto. Aquilo era um sentimento inexplicável e ele aproveitava cada segundo.

Caio, por outro lado, tentava esconder o tesão em sentir aquelas mãos na sua cintura. Nas entrelinhas de cada curva, o toque delicado inundava seus pensamentos de forma avassaladora, quase como um caminhão desgovernado. Ele de fato estava gostando, mesmo que negasse internamente, e então surgiram os questionamentos.

Na linha do horizonte, era possível ver os fogos de artifício explodindo e revelando formatos e cores únicos. Abner via beleza naquilo. Caio via apenas o infortúnio. Afinal, ele estava cada vez mais perto da entrada e a um passo de perder a oportunidade de continuar sentindo aqueles dedos.

Tomado pelo desgosto, Caio estacionou na última vaga que encontrou. Abner saltou com dificuldade e retirou o capacete, deixando seus pequenos cachos voltarem à forma natural. Hipnotizado, Caio observou suas feições e sentiu um leve impulso. Era como se algo o empurrasse, mas o medo foi maior e ele se conteve.

— Acho que o Kayc ainda não chegou. —Abner comentou. — Ele não mandou mensagem.

— O Gabriel que é lerdo dirigindo. —Caio completou, guardando suas mãos no bolso da calça. — Vamos, não quero enfrentar fila.

— Você que manda, querido. —Abner abriu passagem e sorriu. — As damas primeiro.

No centro da multidão, os dois se destacavam. Haviam barraquinhas de comidas e bebidas, algumas que Abner sequer conhecia. Todas enfileiradas e bem alinhadas, com um curto espaço de distanciamento, o que permitia uma certa facilidade em experimentar tudo.

Caio analisava as finitas possibilidades de combinação de sabores e desejava comer tudo ao mesmo tempo. Não se engane pelos músculos e seu corpo definido, ele nunca manteve uma dieta rigorosa. Era do tipo que comia porcarias e não engordava, ou seja, era um dos favoritos de Deus.

Abner, por outro lado, se sentia culpado quando exagerava na quantidade que colocava no prato. Ele tinha medo de engordar o bastante, ao ponto de pular algumas refeições, tudo para manter a magreza. Era do tipo que enxergava apenas a beleza física em si mesmo e considerava a própria personalidade uma merda.

Seguindo essa linha de raciocínio, Abner decidiu se contentar apenas com as bebidas alcoólicas. Entre uma lata de cerveja e outra, ele já estava bêbado o suficiente para dizer certas besteiras. Era quase um hábito não manter a sobriedade, tudo em nome do desejo sufocante de manter os traumas afastados, embora uma hora ou outra eles surgissem repentinamente.

— Não vai comer? —Caio perguntou apreensivo. — Te vi petiscando o vento até agora.

— Tô sem fome. —A voz de Abner saiu meio embargada. — Acho que só vou beber mesmo.

— Conheço uma bebida que vai te levar ao céu. —Caio sorriu maliciosamente.

— Meu clonazepam já faz isso, obrigado. —Abner desviou o olhar, tentando disfarçar.

— Te garanto que não vai se arrepender.

Caio jogou o rosto para o lado, convidando Abner até uma barraquinha de cachaça. As prateleiras estavam lotadas de destilado e a decoração era roceira. Parecia os botecos que Abner frequentava em Minas e isso trouxe uma sensação de familiaridade. Aos poucos, ele cedeu e seus olhos passaram a brilhar em conformidade com o tesouro que estava em sua frente.

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