Mãe de todos

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O dia está insuportavelmente quente, então sinto o suor me incomodando. Apesar do desconforto, tenho que continuar correndo. O coração a mil, batendo forte no peito, na esperança de espalhar oxigênio suficiente pelo meu corpo.

Quanto mais corro, às vezes esbarrando em pessoas aleatórias, mais longe pareço estar. Sei que não vou parar... Estou vendo a cidade em vulto através da visão periférica. E às vezes reparo no chão completamente tomado por papéis de todas as cores possíveis. Muitos verde e amarelo assim como as roupas das pessoas.

Sei que vou chegar a tempo, porque já vivi esse dia antes. Já me colocaram nessas situações em outras décadas. É como se a história se repetisse. E me pergunto se não estou presa em um looping temporal onde tento salvar vidas, mas não consigo evitar a morte e a desesperança no mundo.

O que eu vou dizer para aquelas pessoas que imaginam que estão fazendo a coisa certa? Me sinto uma mãe quando sabe que seu filho está escolhendo o caminho errado, mas não consegue trazê-lo de volta. Meus filhos acham que estão lutando por um país melhor, mais seguro e mais justo. Eles acham que estão escolhendo a fé cristã e que as coisas são simples: o inimigo é vermelho.

Às vezes esbarro neles, vestidos de verde amarelo, e não acho que me reconhecem. Não parecem me enxergar. Estão vendo apenas uma mulher como qualquer outra, correndo pelas ruas porque precisa chegar em algum lugar urgente.

Estou avistando uma aglomeração verde e amarela e sei que é o lugar certo. Estão neste momento batendo em um eleitor e vão surrá-lo até a morte. Dois policiais estão chegando com as armas apontadas para o alto.

Atiram.

Os dois ou três tiros para o alto me assustam. Me fazem sentir o desespero e o risco que meus filhos estão expostos me deixa perplexa.

Tenho poucos segundos para decidir o que fazer. Quando decido alcança-los e entrar no meio da multidão. Empurro com força homens e mulheres que se aglomeraram em círculo até alcançar o homem caído no chão.

Simultaneamente os policiais conseguem conter a multidão, e o homem, já sem vida, repousa em meus braços. Morte política.

Não foi preciso nem incitar as forças armadas a matarem, o ódio deu conta do recado, fazendo as pessoas comuns desejarem a morte uma das outras.

Dessa vez é mais triste. Sempre digo isso. Toda vez é difícil pra mim, toda vez digo que dessa vez foi mais difícil.

De novo não consegui salvar uma vida que poderia ter sido poupada. De novo perdi meu lugar de respeito. Percebo que estou chorando enquanto balanço o corpo sem vida em meus braços, olho para o céu azul e desejo que isso pare.

Não estou vestida com nenhuma cor. Apenas uma camiseta branca velha. Nada que me associasse a nenhum dos lados, afinal, não tenho lado. Mesmo assim, abraçar o morto fez com que tivessem raiva de mim, me acertaram pontapés e um soco.

Caí ao lado do homem de vermelho, golpeada. Quando o ódio toma conta das ruas, eles acertam qualquer um. Não importa quem seja.

Penso: seria esse o meu fim?

Abro os olhos. Levanto-me o mais rápido que consigo, fujo dali, corro para longe até encontrar um lugar seguro. Quando chego às ruas do meu bairro, vejo uma criança brincando no barro, suas mãos estão tentando construir um castelo de barro com a mistura da lama e da terra.

Então entendo o que nunca consegui: o futuro existe. E não será sempre o mesmo. Alguns erros se repetem, mas a verdade nunca morre. A criança se levanta, pula e brinca no ar. Feliz, inocente e alheia a tudo o que está acontecendo.

Ela representa gerações inteiras de luta em um país miscigenado, mil nações moldando os rostos dos nossos filhos. Um país cujas as raízes são de força e resistência. Explorado, colonizado, roubado. Mas nunca sem vida. Até nossas valas inspiram vida.

A criança, de repente, percebe que está sendo observada, nossos olhares se cruzam. Ela sorri. Vida e morte se confrontam, passado e presente se reviram, e o futuro promete renascer.

Um dia não serei mais tratada como tola. Estarei nos corações de todos que querem igualdade, dignidade e o bem coletivo.

Um tiro me acerta pelas costas, caio ainda olhando a criança, que agora tem um semblante de medo.

Não sei quem apertou o gatilho, mas já estou acostumada a morrer. Dessa vez, disseram que deus quis assim. Deus acima de todos. Brasil acima de tudo. Disseram que qualquer ideia racional era comunista, e que era preciso matar quem pensava diferente. Disseram que era preciso acabar com o 'mal vermelho'.

Mataram-me mesmo não sendo vermelha.

De cima, consigo ouvir as sirenes se aproximando, alguém sai da ambulância e diz quem é essa? Outra pessoa responde enquanto retira meu corpo da rua. É a democracia. Não aguentou dessa vez. 

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