20 de agosto

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Ao final da noite, depois de passar o dia pensando em todos os detalhes, no que os outros vão comer, na louça, na roupa, no lixo, na limpeza... No quanto a mãe trabalhava e fazia isso todos os dias sem respiro e sem reclamar, sentiu-se exausta. Chegou a questionar se aguentaria tudo aquilo de novo. Como se tornaria a herdeira da mãe? Aquela que abdica de si para os outros? Haveria escolha?

Lembrou de tudo o que a psicóloga disse sobre equilíbrio e trabalhar menos. Sobre não deixar a rotina lhe consumir. Sobre colocar limites em seu emprego no escritório.

E lembrou do que diziam. Se você estudar terá um futuro melhor. Ela estudou. Estudou tanto que quase não viu a vida passar e agora os primeiros cabelos brancos já davam sinais. Hoje é uma workaholic que dá tudo de si. Porém, dar tudo de si para qualquer coisa é muito perigoso. É preciso equilíbrio nesse mundo voraz. Porque de fato, quando parava para pensar, nunca se imaginou em um escritório para sempre.

Acontece que tem que se sentir grata porque muitos querem o seu lugar. É um privilégio! Em outras entrevistas já ouviu você tem filho? Porque ter filhos é um rótulo. Se tem filho, logo não é uma boa profissional. Se tem filho, a vaga será daquela que não tem filho e nem pretende ter. Fica implícito. Mas é assim que é.

E às vezes quando deixa transparecer suas emoções, vão lhe perguntar se ela está de TPM. E ela não tem TPM, seu útero foi tirado. Uma mulher sem útero, ainda é mulher. Há muitos jeitos de ser uma mulher, e nenhum é fácil.

No dia em que fez entrevistas e ouviu se tinha filhos, voltou para casa cabisbaixa. Olhou a mãe nos olhos, quem sempre lhe dá um abraço apertado no fim do dia, e disse a realidade é nua e crua. E ninguém está preparado para isso. 

A realidade endurece, caleja, inflama, entorta. Como os dedos da mãe, que começou a trabalhar na roça aos 6 anos de idade. E agora aos 60 anos está perdendo o movimento das mãos.

A mãe diz não quero dar trabalho, filha. A filha pensa que a mãe já deu muito trabalho, já ofereceu ao mundo muito esforço, trabalho digno e incansável, sem férias, sem remuneração, sem pausa. Das funções que ela assumiu até ali, ser mãe foi a mais difícil.

A filha, que sempre procura pelo sentido da vida, pensa que ela sobreviveu ao próprio parto por alguma razão divina. A mãe precisaria de companhia naquela idade. Então ela nasceu, roxa, quase sem ar. Em outro universo teria morrido como o bebê anterior que habitou aquele ventre e morreu seu ar. O irmão não teve a mesma sorte. Mas ela sim. E por quê? A natureza não se explica, apenas se aceita.

Acontece que ela sobrevivera. E tenta ver isso como um milagre, como o laço divino que liga ela e a mãe. Nessa altura faria o possível para recompensar os anos em que a mãe controlou e organizou tudo sozinha. Estaria ali. Esse era o propósito.

Naquela noite de exaustão, a mãe lhe dissera minutos antes de ir para cama:

"20 de agosto foi o dia em que eu descobri que estava grávida de você. Tinha muito medo do que ia acontecer. Precisava trabalhar, já tinham passados 10 anos desde a minha gestação anterior, e tinha sido muito difícil. Mas você veio. Você sobreviveu."

Então a filha pensa que está forte o suficiente para seguir. Mas nunca forte o bastante para ver a mãe partir. Quando pensa nesse dia, sua garganta fecha, as lágrimas ameaçam sair. Era preciso cortar o cordão umbilical, mas aquela ligação era diferente. Mãe e filha se sustentavam na força e na tristeza uma da outra para sobreviver.

A filha dá o remédio para a mãe, deixa a água ao lado da cama. Pede para que ela se hidrate e fique atenta às pedras no rim. Segue em silêncio. Toma seu banho, escuta uma música, uma em piano triste. Se depara com a música somewhere in time.

Lembra que aprendeu a tocar aquela música, mas que não poderia tocar porque teve que vender o teclado quando coisas ficaram difíceis. Então sentiu as costas fisgarem, era o peso do que ela poderia ter sido. E se tivesse sido uma grande musicista? Tocando pelo mundo... sentindo a música entrar em todos os seus poros.

Foram tantas versões de si mesmas deixadas para trás. E o que ela é hoje?

Deitou-se.

Dormiu.

Fez tudo outra vez.

Só sobre serWhere stories live. Discover now